Desmaker residence
Shelf service
Estava instalado o alvoroço; a residente mais ilustre tinha solicitado uma camareira bibliotecária. Dizia que psicóloga também dava porque tinha ouvido dizer que os psicólogos dão para tudo, mas era essencial um talento específico em alinhar lombadas e traças por um critério que lhe permitisse nunca se atrasar para o buffet de carnes frias. Dizia-se possuir uma biblioteca singular com obras de fusão, praticamente únicas e de irrepetível originalidade, difíceis de catalogar, de emprateleirar e absolutamente inlincáveis mesmo nos sites mais glamoroso-gutemberguianos.
Apresentou-se uma serviçal trajando de negro rendado, de coxas robustas e olhar de récita parnasiana que logo disse: «farei com as suas prateleiras o que a seda faz ao meu busto». «Olhe que os meus livros são como a minha sedução: de difícil arrumação» respondeu a residente caprichosa e repleta daquela ironia que distingue o sumol da sangria. Parecia instalar-se no ar um ambiente de desafio: uma bibliotecária de espanador e uma hóspede que era um amor.
Os caixotes enchiam a suite, o desafio estava ali, ri-te ri-te, depois de comer umas migas a camareira desapertou as ligas e fez-se à vida sob o olhar da nossa querida.
Sai-lhe logo um difícil, ‘Seis personagens à procura de um Godot’, de um tal de Pirandeckett, obra de teor religioso-ficcional em que na última ceia metade dos discípulos bazaram e foram jogar à sueca para o monte das Oliveiras. «Ler isto deve ser um frete, ponho-a na prateleira dezassete».
Rapidamente saca o segundo, um enigmático mas bem ilustrado « Mete a morfose no ovídeo» livro de poemas de Kafkavis, um grego encontrado numa cesta junto ao Bom Jesus de Praga e criado por uma família judia de comerciantes de ananases que depois se transformavam em maçãs rainetas. A camareira nem hesitou: «este vai para a prateleira sete e meia a das noites de diarreia»
Quase em acto contínuo tira da caixa um volume colorido com o título ‘ Agarra-me-o-non’ de um obscuro Esquilmodovar, obra de culto nas mesinhas de cabeceira dos hotéis gay friendly, onde Zeus é preso à cama e Hermes faz-lhe festinhas com a pena duma garça shakespeariana, e que foi directamente para a prateleira vinte e três «a daqueles que nunca lês»
Sem se ter apercebido desta intimidade de tratamento tuteante, avança para outro caixote donde retira o expressivo ‘A cantora marreca de Notre dame’ de Vitor Huguionesco Cardinale, romance picaresco que bebe da novela quixoteana na medida em que uma rabanada de vento faz cair duas gárgulas na carola duma fadista parecida com a marisa, que fica do tamanho da suzana félix, e foi directamente para a prateleira doze « leia disto, minha querida, mas não abuse!»
Sem esperar pela resposta, pega no inesperado ‘Casa de bonecas de Luxo’ de Ibsen Capote, obra enigmática sobre uma mulher que entra num sonho e se vê rodeada de homens de costas largas, longas, apolíneas, recitando de cor o ‘Ulisses no país das maravilhas’ de Homer Joyce Carrol e dando conferências sobre a importância da teoria da relatividade na curvatura dos raios laser, enquanto explicava as nuances do verde alface na obra de Rembrant , e que, quando acorda, decide mudar a cor dos cortinados da sala. «Vais direitinho para a prateleira quarenta e oito que é para se ler depois do ...»...«Estou esclarecida!» interrompeu a nossa residente que já estava estarrecida, «vamos mas é as duas fumar um charro e apanhar uma ganda fedra e depois vamos ao buffet de verduras comer uma saladinha de racines com tartufos para desintoxicar e mostrar ao mundo que somos umas molières d’armas.» E acabaram a ver o pôr do sol com o ‘A gata do tio vânia num telhado de zinco quente’ dum tal de Tenesschkov Williams, que saiu da prateleira cinquenta, daqueles que já não se aguenta.
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