Yesterday builders

O passado é a maior invenção do homem. É uma espécie de desforra da nossa condição de seres reféns da imaginação, dum sentido para a vida, e dum tal de fio condutor. (Não me refiro à memória, essa tem um carácter instrumental, e é um assunto estafado, ora mitificado, ora metaforizado, ora neuro-biologicamente modificado à base de rodriguinhos experimentais)
Falo mesmo do ‘passado’, dessa construção humana, do resultado dessa poção mágica que o criador nos deixou à mão de semear: podermos escavar um terreno que já foi drenado, assoreado, seco e inundado, pasto e poisio, aplainado e esburacado, e de lá sacar fósseis que ainda se riem ou choram à mercê das cócegas que lhes façamos com o pincel arqueológico da nossa mente.

O passado é uma ficção mais ou menos plausível que vive da manobra daquelas sensaçõezinhas de fotonovela, dos odores, dos sons, das cores, dos floreados de alma, dessas brincadeiras de deuses que fazem de figura de artistas de circo na constante festa de natal & carnaval & páscoa que é a ‘recordação’. A etimologia nem engana: trazer de novo ao coração só pode dar numa realidade até então inexistente, pois se até o sistema urinário inventa líquidos todos os dias, quanto mais a famosa bomba dos aurículos dançantes assim agarradinha na cintura pelos enzimas calçados duma vontade também chamada memória.

A inevitável característica retalhada e fantasiosa que tem o passado permite um conjunto de combinações que só encontro paralelo na culinária, onde podemos pôr a carne picada a fazer de hambúrguer ou de esparguete à bolonhesa, depende de como a amassamos e da companhia mais ou menos picante que lhe damos; só que de qualquer forma ela no final pouco tem a ver com a vaca que deu a alcatra ao manifesto. Ou com a minhoca.

O passado é pois uma espécie de código genético virtual, tricotado que nem uma botinha para a bébé bastarda da memória, depois desta ter passado uma noite com um viajante atrevido, necessitado de consolo e au naturel. Na verdade o passado nem sequer é algo que já passou, o passado é algo a precisar ser criado, inventado pois; é aquilo a que qualquer futuro ainda pode almejar: poder vir a ser passado, e é só nessa altura que se realiza verdadeiramente, é a nossa vez de sermos deuses por aproximação, sem ninguém nos contestar, sem ninguém nos pedir contas, fabricando ‘ontens de glória’ que nem gente grande, ou ‘ontens de estimação’ que nem velhas jarretas.

Há até uma outra ideia estafada de errada, filha dum pragmatismo bacoco: a de que não devemos pensar ‘no que teria acontecido se…’ porque isso não levaria a lado nenhum, e nos esgotaria em fantasias inúteis; ora se todo o passado é inventado, tanto faz repescar e ‘apropriarmo-nos’ de algo que supostamente aconteceu como de algo que supostamente não aconteceu; se ‘somos o que esquecemos’, como tanto parteiro de aforismos já disse, também somos o que não fomos, claro, e isso nem precisa de ser sacado a ferros a uma memória preguiçosa, para nos safarmos em condições basta termos cuidado para não cair dentro do caldeirão alquímico que nem Joãos ratões da imaginação.

Por isso, se vos der jeito, e alguma vez tiverem sido esgrouviadas eu faço-vos Natalie Imbruglias num instantinho, ou faço-vos com que aquele ‘King Edward’ meio adocicado tenha sabido a um ‘Epicure’ da Hoyo de Monterrey, fosse ele comprado em Madrid, ou em Genéve, ou numa tabacaria de Fernão Ferro e já cheio de verdete.

Felizmente o homem não precisa de grandes mutações genéticas para construir o seu passado aparentemente mais inacessível, e assim podemos facilmente ‘polinizar’ os lugares mais recônditos da nossa alma, que vivem escondidos tal qual o pólen duma orquídea de Madagáscar como se ele estivesse tão alcançável as in a marigold. E se calhar é por isso todos sonhamos em ser botânicos reformados.

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