Conto a que é preciso dar um certo desconto

Olivier tinha chegado tarde a Cannes, na pensão já todos dormiam menos o Sean Penn que estava a colar na caderneta os últimos cromos da colecção da Madonna. O seu filme sobre os mestres pasteleiros da Croácia tinha-lhe corrido bem mas o Kusturica à última hora faltou-lhe com a sequência original dum casamento de ciganos marados que lhe teria caído que nem ginja na parte final; acabou por substitui-la pelos cortes não aproveitados duma corrida de carros filmada pelo Carpenter, e até encaixou bem porque um dos carros era guiado por uma ruiva que ia com as mudanças desengatadas e enfiava-se de frente na montra duma pastelaria. Olivier ainda alimentava alguma esperança no prémio principal, mas havia um lobby forte para um documentário sobre os efeitos perversos dos brincos de argolas no estereótipo da beleza feminina. Uma rábula em torno da figura de Xantipa preparava-se para ser a grande revelação; tratava duma moça prendada que tricotava camisolinhas de lã para pensadores-filósofos mas inscritos no sindicato e que punha um feitiço no fio que os transformava incomodamente a todos em liberais anglo-saxónicos e defensores de quotas para mulheres. A rapariga que fazia de Xantipa estava na mesma pensão de Olivier e encontraram-se ao pequeno-almoço, mas infelizmente já não chegaram a tempo dos palmiers porque se tinha gerado um grande reboliço logo pela manhã quando se soube que o realizador do documentário sobre os brincos de argolas tinha sido pago por fora pela Majorica; já não havia uma indignação tão grande desde aquele ano em que se descobriu que o Tarkovsky era patrocinado pelo Xanax. A rapariga que fazia de Xantipa gostava de brincos de pérolas e quando se enervava só bebia copos de água, era uma rapariga discreta, e tinha ficado com aquele papel porque o realizador não apreciava mulheres vistosas, nem convinha, tal como não convém às mulheres usarem brincos de argolas. O outro tal documentário estava bem feito e até aparecia a Nadia Comaneci com uns brincos de pendentes formato cavalo com arções; ela tinha montado uma churrascaria a meias com o Bill Murry que se punha ao balcão a galar as freguesas e a cantar músicas da Edie Brickell em falsete enquanto besuntava as frangas de piri piri. Mas Olivier no fundo estava por tudo desde que as pessoas gostassem daquele grande plano da torta de figo com amêndoas no qual ele se tinha esmerado tanto, e em que a Victoria Madsen se embebedava e tudo, com o ‘cheval blanc’ de 61 ( acho que é neste ano que essa colheita está no seu melhor - tal como acontece com outras espécimes da natureza, diga-se). Só que o reescrever da história de Xantipa comoveu muito o júri feminino, no fundo demonstrava-se que uma mulher só se torna rabugenta porque muitas vezes se limita a viver ‘sitting, waiting and wishing’. Olivier acabou por receber o prémio de consolação e foi assim com ela comer uns palmiers cobertos, daqueles mal cozidos e em que a cobertura se desfaz na boca tal como a verdade quando vem com demasiado açúcar a pecar sobre o ovo. Curiosamente a rapariga que recuperou a imagem de Xantipa em Cannes tapava cuidadosamente as orelhas com o seu cabelo indomável. Mas Olivier também não tinha nada de jeito para dizer, mal bolos sabia fazer.

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