Conto da parva e do consolado

Eu cá se fosse a vocês recusava-me a ser personagem desses novos romances que agora escrevem por aí. Tratam-vos mal, não vos dão miúdas decentes para confraternizar, casamentos felizes poucos, filhos – quando os há – cheios de problemas na escola, sexo é mal e porcamente, angústias em barda, chegam a chamar-vos feios, quando não velhacos, e até vão ao cúmulo de se porem a falar com vocês em discurso indirecto; mandem-nos àquela parte, os gajos ou são escritores ou são motoristas de táxi, vão lá brincar às figuras de estilo com os amiguinhos deles; O Jack e a Louise ganhavam a vida a fazer de personagens na nova prosa americana, chegaram a entrar num livro do Roth num papel secundário da Pastoral e saíram-se bem, deu para acabarem de mobilar a casa, só que sentiam que lhes faltava qualquer coisa, apenas situações de construção de personalidade já não lhes enchiam as medidas, gostavam de experimentar as sensações fortes dum romance à antiga, ele queria mesmo medir forças com um sogro dominador (mas não castrador) e ela não se importava de ter de lutar contra uma amante daquelas vistosas e tudo, mas ela era um bocado parva. Apareceu-lhes então um romance com disponibilidade para uma trama assim, passava-se na zona dos Grande Lagos, na altura da Primavera, os capítulos eram curtos, eram pagos ao trocadilho, à graçola e ao gemido, e havia bónus para diálogos aforísticos, pareceu-lhes bem e até arejavam, é que foda-se desde o último que tinham feito do Carver - e só com meia dúzia de páginas - tinham ficado a cheirar álcool e tabaco que até tresandava. O livro aparentemente tinha tudo para correr bem, Jack chegaria mais tarde ao enredo porque só entrava no 4º capítulo, aproveitou essa folga para um biscate com umas falas rápidas e obscenas num conto brasileiro curto, tipo Ruben Fonseca mas dizendo cona mais vezes, onde testavam agora – para desenjoar –americanos, pais de família gordos e castos; mas quando chegou aos Grandes Lagos a coisa começou logo a cheirar-lhe a esturro: Louise não estava na roullote à hora do jantar como previsto . Pelos vistos não aparecia desde o 2º capítulo, um tipo que fazia assim meio de narrador, meio de personagem – por falta de verba, julgo – acabou por lhe confidenciar: ela foi fazer jet-ski com uma miúda que tinha feito de puta fina num livro do Rushdie. Foda-se, com outra gaja! Jack estava confuso e perplexo, nunca tinha faltado aos seus deveres, ele cozinhava, ele ejaculava, ele até arranjava os focos de halogénio nos tectos falsos, ele apalpava-a nos sítios certos - tipo discos pedidos - numa cadência sempre certinha e com aquela coisa de rodar o dedinho até tinha apanhado uma porra duma tendinite, ele carregava com a merda da lenha, ele num livro de aventuras até chegou a levar uma patada dum urso para a defender, e a parva agora ia fazer jet-ski com uma fufa e nem esperava por ele no 4º capitulo. Foi pedir explicações ao escritor. Este cabrão, estava-se mesmo a ver, não conseguia endrominar uma história em condições e pôs as duas a trocarem mimos, ora já se sabe, gajas, o marido duma fora - ainda para mais se calhar a ajudar umas brasileiras a vestirem-se para o volei de praia - não perdoaram claro, e o 3º capítulo já tinha sido um vê se te avias completo. Mais valia ter ido ajudar o Martins Amis a fazer a porra da autobiografia dele, desabafou Jack, o meu amigo Jack, sim foi nessa altura que eu me fiz amigo dele, depois de ter alugado o barco àquelas putas. Pareciam mesmo umas personagens dum livro do Kundera a quem eu tinha ajudado a pôr o motor fora de borda uns anos antes, assim também eu escrevia livros com gajas daquelas a sacudirem a areia à minha frente; decidi-me então a dar uma mão ao Jack, falei com o escritor daquela trampa e arranjei um lugarzito discreto no meio do 4º capítulo. O ambiente estava tenso, chegou-se a temer que o 5º capítulo ficasse uma cangalhada parecida com o Mal de Montano, ao escritor ainda lhe deu uma ameaça de ataque nos divertículos, a coisa estava preta, as gajitas tinham-se afeiçoado uma à outra, um estúpido que tinha péssimo mau hálito, e que nem se conseguiu aguentar em condições no 1º capítulo porque tiveram medo que deixasse mau cheiro no papel, dizia à boca cheia que era um imenso carinho que as unia, e eu não aguentei aquilo e fui falar com o tipo que tinha feito o prólogo. Não era bem o Borges mas também vivia com uma gaja com apelido de máquina fotográfica de contrabando e ouviu-me atentamente, pareceu sensível à minha ideia de que um homem tem direito à sua dignidade, um homem que até já tinha sofrido como personagem num romance do Coetzee quando foi necessário pagar umas prestações do carro, porra, um gajo assim tinha claramente direito a um capítulo em condições, podia não ter massagens tailandezas mas pelo menos havia de se lhe arranjar um jantar em família com o bolo de chocolate do carrefour. Só que depois de tanta coisa - esses gajos da escrita são sensíveis mas é o caralho - tenho de vos confessar, o melhor que lhe consegui arranjar foi o Jack também ter ido dar uma volta de jet ski no 6º capítulo. Mas pareceu-me consolado e Louise ria-se que nem uma parva. Eu cá, no meio da confusão, acabei como personagem principal porque o editor achou-me parecido com o D.Quixote, mas porra só espero não acabar um dia a enfeitar umas canecas de café.

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