Apenas amor

Quando se juntam duas pessoas para conseguirem o pleno que é fazer sobressair tudo o que há de pior em cada uma delas, faz-se um favor à sociedade, o famoso: estraga-se só uma família. No entanto, se repararmos ainda há este brinde : o melhor de cada um pode ficar então assim livre para a sociedade desfrutar. Deviam ser abençoadas essas uniões com graças especiais, para que se aguentem, sem nenhuma das partes soçobrar à tentação que é acabar por querer-ser-feliz-com-outro. O aparente sofrimento que acarreta essa vida acasalada que põe à tona as ‘partes más’, ao ser devidamente entendido e enquadrado, passa-se na boa, alimenta a ironia dos dias sem ser preciso a televisão ou as taras dos amigos, e o ‘isto não é possível’ torna-se tão banal que até às vezes permite um ou outro jantar à luz das velas se houver pelo menos um bocadinho de fome. O sexo é praticamente irrelevante desde que de manhã as toalhas estejam quentinhas depois do duche e sejam felpudas, o corpo geralmente é cúmplice de toda a desgraça da alma. Como estas relações são geralmente acompanhadas duma boa dose de orgulho e raiva surda (não deve chegar a ser ódio porque a passionalidade deste estragaria tudo) transportam consigo algum estranho prazer – às vezes corrompido por ataques de comiseração – de registo vertiginoso que produz escaladas de delicioso achincalhamento mútuo, sem insulto, apenas com o dedo a nunca bater ao lado da ferida. São fases interessantes, porque põem à prova a solidez dessas relações e geralmente coincidem com inestéticas lágrimas femininas e estúpidos sorrisos masculinos. Mas também se revelam como fases anti-valvulares, ou seja todas as forças negativas se acumulam, nada se perde para o exterior, a pele pode não ficar no melhor estado, o cabelo ora enfraquece ora fica empastado, mas tirando isso é uma via sacra da melhor qualidade, com um gólgota em cada esquina, e felizmente não há a mais pequena possibilidade de alguém vir com o lencinho limpar o suor aos pombinhos porque esta guerra é dum ermitismo quase perfeito. «Mas porquê?» É uma pergunta legítima , mas estúpida. O equilíbrio dum sistema nunca deve ser racionalizado pelo sistema, senão tem tendência a deslocar-se para se proteger, e chega a desvanecer-se. A maldadezinha humana, muito própria daqueles que parecem ser anjos incompreendidos mas descontraidos, deve ser tratada em regime de comunhão de bens, mas rasgando todos os dias os pressupostos dos pactos pré-nupciais por demonstração da total filha-da-putabilidade de ambas as partes. Que os Deuses nunca enjeitem as bênçãos a estas ternurosas bestas.

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