Isto vai-se a ver

continua a encher

não pára de encher
está sempre a querer encher
mas é apenas verbo de encher
e não sei quando irá acabar

porque sinto-me a alimentar

uma enorme câmara de ar

e só me apetece soprar

e mais soprar

e soprar
nem que seja para o ar
para ver uma pena voar
a despedir-se do pássaro

porque este nem sabia assobiar


Não basta dizer palavras enigmáticas para se ser shaliah; mas a economia até vai crescer, Pinilla já marca, o petróleo vai descer, uma Condoleeza casta - e ainda bem que não morde - é a imagem da América (que preteriu assim Laeticia), Mónica Lewinsky já era, Cicciolina não sei o que é feito dela, Bottiglione (ou o raio como o gajo se chama) voltou ao baptistério, Barroso já conseguiu acertar com uma equipa de matraquilhos a sério, vão acabar os benefícios fiscais e os prevaricadores têm os dias contados, ninguém atina com os juizes naturais, foda-se continua a ser um palavrão e merda uma indecência, o Jesus histórico atormenta-nos a consciência, Arafat neste momento se calhar já sabe o que é que Alá mas não nos pode dizer, marcelo já não pia e temos uma alta autoridade que é uma categoria, o ano tem doze meses, os indianos não tarda são mais que os chineses, Narciso Miranda pouco fala, Fátinha Felgueiras já não se rala, Collor de Melo já não é presidente do Brasil há uma carrada de anos, um minuto demora mais a passar que um segundo, e as bebedeiras de Yeltsin já não atormentam o mundo. Qualquer sumo manhoso precisa de liberdade de 'espressão', é bom ter um Guterres sempre à mão, e as coisas bem vistas talvez não fosse mau fazer o teste de alcoolémia ao Soares antes das entrevistas.
Uma democracia em referendo distrai-se enredada em perguntas constitucionais e concretas, e a vida muitas vezes anda adiada porque não se fazem perguntas normais e indiscretas. Há que tributar tudo o que mexe, já não se encontra facilmente um grande estupor e Borges nem era grande escritor, mas ainda é possível comer carapaus de escabeche.
Está bem protegido o mercado, o estado é amado também, o povo ainda gosta de fado mas já não há filhos da mãe. Lolita não era adolescente, Proust nem era maricas, em cada culpado há um inocente, e em cada bucha há dois esticas; o bigode de Hitler era postiço, o gulag era um spa, Torquemada um noviço e isto está no que está. Hamlet não sabia o que queria, Anais Nin gostava de homens mas não sabia, Yourcenar só foi bela com Zenão, e é mau amar em contramão. O mundo está feito num quioto, Anna K. mandou-se para debaixo dum comboio russo, mas nem todos os ratos são de esgoto, nem todos os excessos são abuso.
Afinal a caverna de Platão era arrendada, o ser de Sarte era emprestado, o idealismo de hegel tinha uma amante secreta , e o eterno retorno ficou parado no tempo. E é por isso que nem todo o sertão é brasileiro, nem todas as armas se compram no armeiro, nem todos ao males d’alma se curam no deserto, nem toda a bunda do leblon é carioca, nem todos os esquimós se casam com uma foca, mas também nem todo o chico é esperto.
Mas a economia vai prestar vassalagem aos bons costumes, a sacristia vai dar os paramentos aos pobres, toda a teologia será da libertação, e nunca mais seremos governados por um cabrão. Calvino engordará e praticará sumo com Buda, Maomé fará razias de mãos dadas com Rumsfeld, os homens terão todos a pila circuncidada e não andarão mais à porrada, os chineses perderão no ping-pong e seremos todos salvos antes de soar o gong. Descobriremos afinal que até somos todos persas, violados pelo Tamerlão que a desgraça tinha mais à mão, todos somos afinal pecadores, mas os tapetes que nos tiraram eram mesmo voadores, e aquilo que punha as mulheres aos berros eram mesmo dores, mas nem assim deixam de se enganar com flores.
Ingres é que não podia ver uma mulher de costas, Schiele não podia ver uma mulher nua, Duchamp não pôs o pneu na roda da sua bicicleta, e por isso toda a arte é incompleta, nenhum homem tem uma mulher sua, acabarão tristes os cavalos que viveram das apostas, e tristes dos asnos que se confiaram retoricamente nuns quiasmos. Leviatan acabará então por aparecer disfarçado de um liberal embrulhado em papel pardo, mas ao estado não há nada que o irrite, Adam afinal não era dos Smiths, David nunca podia ter pintado Ricardo, nem um homem que nunca tenha sido apunhalado poderá ter um coração de leão, e um dia, quando menos se espera, ainda se saberá que nas tardes de verão era o Sol que andava à volta da Terra. Nesse dia dar-se-á dispensa aos profetas requentados, pois estes já só mugirão, e sentados, galando os ruminantes de desgraças, porque afinal tinham todos desaprendido de assobiar. Deus, nessa altura, se calhar, vai entregar outra vez o mundo a quem tenha asas. Ou então arranca tudo de novo, mas desta vez começa com gajas.



De facto estamos encaminhados, só que isto, vai-se a ver, corre o risco de perder mesmo a piada. Mas como somos animais racionais vivemos bem com qualquer ração.

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