(E se fosse o Kundera a dizer isto)

um título em itálico e entre parênteses já diz muito da falta de confiança no texto. Mas é que ouvi dizer que os disparates serão os últimos benefícios fiscais a ficar de pé.



Pensava que era só uma consulta de rotina e estava apenas ligeiramente preocupado com o ensimesmamento revelado por alguns posts dos últimos tempos, até aborrecido, se calhar, com a absoluta falta de um mínimo de qualidade dos mesmos e ainda para mais ninguém me tinha obrigado a editá-los, mas ora, também isto não seria nada demais, apenas o costume, o número de leitores deveria ter estabilizado na pedagógica oscilação entre 7 e 9, a vaidade dos dois dígitos estava arredada, a ausência da fita métrica de visitantes continuava a garantir a paz de consciência , nada demais mesmo; só que logo após ter entrado e dado os primeiros passos no consultório da Dra Girassol reparei que a coisa estava preta, dou de caras com o olhar dela, mesmo camuflado numa franja simbólica, faiscava premonições dum tratamento de choque. Tremi um pouco, tenho de confessar, e nem sou de tremores, sem de suores, mas quando ela começou a falar até fiquei branco: «Olhe, já nem o dicionário se aproveita, mas eu também já calculava que você não iria aguentar aquele ritmo. Pois agora ou põe rapidamente a mão nisto ou nem sequer consigo segurar o pessoal do blogger que já não está para suportar tanto bit desperdiçado para que ninguém leia» «Mas... oh sra doutoraahh»- isto era eu a falar arrastado e a tentar ganhar tempo para eventualmente ainda articular uma frase - «também não acho que isto esteja assim tão mau, desde que eu garanta que os meus filhos não lêem nada desta trampa, julgo que tudo isto também não é caso para alarme, pronto, confesso, ando a encaramelar e a encalimerar a escrita, mas também não faço disto um bicho de sete cabeças, pode ser que quando voltar a ser original e disser mal do Santana Lopes ou citar o Pavese isto se recomponha» O olhar da Dra Girassol tornou-se praticamente trovejante e não foi de intrigas, tinha mais que fazer, meninos com problemazinhos de caca não era o seu passatempo favorito e despachou-me: «isto do Outono está a transtorná-lo, você não percebe nada da relação entre a distância Terra-Sol e a efervescência hormonal do feminino, você está totalmente equinociado, e está a meter-se em assuntos que até alguns antropólogos se vêem à nora quanto mais um reles balancete com pernas armado em desmaquilhador do sexo das almas» «Mas oh sra doutora, eu só estava a querer variar e...» «Esteja lá caladinho, e vá aviar já isto que eu aqui lhe estou a receitar, e se não resultar avançamos mesmo para o transplante, mas também lhe digo, esteja descansado, qualquer cérebro de galinha prenhe deve ser compatível consigo»

Olhem, eu sai quase em transe, balançando entre a humilhação e o desespero peridepressivos, e nem sei bem como é que ainda consegui escrever isto, limitei-me a deixar-me ir; mas como estão na moda os registos apócrifos, hoje o dicionário não ilustrado acabou por seguir este caminho menos amigo do cânone tentando esclarecer desengonçadamente “De que falamos quando falamos de gaj@s”, o Raymond Carver felizmente não se lembrou desta variante, mas o ambiente no consultório da Dra Girassol até estava muito pouco carveriano (e é pena porque agora está na moda). A palavra gaja já está muito batida, eu sei, mas por fazer parte do esquema obrigatório destes tratamentos não podia usar nem “moça” nem “gaiata”, e vejo agora nem estou bem certo que na farmácia não tenham baralhado as receitas todas com umas da gaja frígida que estava à minha frente na bicha, caraças, se calhar vou-me dar mal com isto, mais valia ter ido ao SAP, eles davam-me um Actifed, e eu punha-me a dormir num instantinho e não chateava ninguém, e não é que ainda acabei por ir tomar um chá de flor de marialva a ver o que isto dava e nem sei se não piorei mais a coisa. Bem o primeiro disparate que me veio à cabeça foi falar outra vez das "Gajas inacessíveis" – aquelas que mesmo quando estão só a fazer uma perninha, fazem-nos parecer um mero biscate ( e se fosse o Kundera a dizer isto...) E agora, a propósito, ou a despropósito, noutro dia vi nas bancadas do Open dos USA a Mónica Seles, a obstinada Mónica Seles: nunca uma esquerda a duas mãos será mais alguma vez guinchada como o fazia a Mónica. Isto sim são também verdadeiras saudades. E isso fez-me reparar que se calhar um "Gajo inacessível" - aquele que mesmo dando ares de profissional a tempo inteiro não passa de um alegre biscateiro. E face ao que ontem escrevi, ainda me apetecia esclarecer melhor o assunto, é que acho mesmo que as "Gajas de escrita tola" – são as que procuram desmistificar as iconografias do feminino ( bela frase) com uma vulgaridade levemente ordinária, e assim julgam alcançar finalmente a também ainda mitificada emancipação que pelos vistos não alcançaram com o soutien queimado ( e se fosse o Kundera a dizer isto...). E claro, o que não falta aí são também "Gajos de escrita tola" – os que vão a reboque da ironia poética julgando que já estão com o atrelado cheio de boas metáforas ( e se fosse o Kundera a dizer isto ...). Reparo agora que qualquer registo apócrifo deve ser ligeiramente brejeiro, e nada melhor que estrear-me com as "Gajas sexualmente desinibidas" – são as descodificadoras mais airosas, porque conseguem descobrir um bom fornicanço, no meio dum arranjo de rosas. ( e se fosse o Kundera a dizer isto...). Sobre gajos sexualmente desinibidos não devo falar porque poderia parecer mais publicidade enganosa, no entanto roço-me noutras categorias adjacentes como as "Gajas sensíveis" – as que sentem, mesmo sem serem pagas para isso ( e se fosse o Kundera a dizer isto...). E aqui sim, até parecia mal se não falasse dos "Gajos sensíveis" – os que ...é pá isto estava mesmo a pedir... ”o” sentem, mas não o fazem sentir ( e se fosse o Kundera a dizer isto...). Só que isto é como as cerejas, vêm-me logo à ideia as "Gajas pudicas" – o tipo de gaja que fecha os olhinhos porque assim sempre são menos uns buracos desguarnecidos ( e se fosse o Kundera a dizer isto...); E estas sim têm companhia, são os "Gajos pudicos" – os que pura e simplesmente não dizem palavrões à frente das gajas, mas desforram-se por trás( e se fosse o Kundera a dizer isto). No entanto há que saber separar as águas e ficaria mal se não revelasse a existência das "Gajas cultas" – as que estando deitadas às escuras dizem ao desgraçado que está ao lado que assim não conseguem ler nada ( e se fosse o Kundera a dizer isto...) mas estas geralmente nem se dão bem com os "Gajos cultos" – os que só copulam (hoje estou pudico) como vem nos livros. É a chamada acopultura. Os seus únicos devaneios são a acupunctura, os lapsos linguae, neste caso (e se fosse o Kundera a dizer isto...). E claro, adoro definir as "Gajas tímidas" – olham para ti, julgam que és midas, deixam-se tocar, lambem as feridas e deixam-se ficar como o ouro a brilhar ( e se fosse o Kundera a dizer isto babavam-se todas com as rimas). E acabo com gente fina, é sempre outra coisa quando sabemos ter como amigas "Gajas muito linkadas" – as que se dão ao luxo de usar o evax tampa naqueles dias mais linkxados (e se fosse o Kundera a dizer isto...) ou amigos "Gajos muito linkados" – os que conseguirem pôr uma mulher como a Nicole Kidman a dizer qualquer coisa do género «I also like some poetry after supper» (in “Moulin Rouge”) e ainda ficam a rimar em condições quando chegam ao café (e se fosse o Kundera a dizer isto ...). Afinal ainda houve espaço para estas últimas encontradas num manuscrito duma praia do mar da palha ( quem não tem mar morto safa-se com o que pode) são as "Gajas lixadas" – topam-nos à distância, mas depois vai-se a ver, ao perto perdem a focagem e levam-se bem como as outras, e até vão com os olhinhos a piscar ( e se fosse o Kundera a dizer isto ...); e os "Gajos lixados" – Não há. Só há gajos rebarbativos. E levam-se todos com ligeiros afagamentos. Ficam como soalho pronto para o baile (e se fosse o Kundera a dizer isto... )



Não foi de certezinha absoluta isto que ela escreveu na receita, mas aquilo também era uma letra desgraçada, e que venha o transplante, pronto! que se lixe

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