Desabafos dum crente (em fase) populista
Não, acaba por não ser nada desse Deus pensado, filosofado, provado, ou reprovado, que eu gosto. Um deus assim até irrita. Desse Deus ninguém gosta, aliás nem sequer alguém acredita. Esse Deus só serve para ser contestado ou para vender livros falsos como se fossem atestados. Um Deus muito pensado fica soprado, inchado, e depois não escorre bem pela alma dentro, e então se chegou a entrar lá por aquele corredor estreito, é que só deixa mesmo espaço para o mero conceito. Ou pode ficar demasiado sólido, como uma carga pesada, e a alma mal se aguenta com tamanha empreitada. Ou então fica demasiado diáfano, tão esfumado que parece só lá estar a cumprir um fado. O Deus que eu gosto afinal é do Deus das beatas. O Deus dos desgraçados, dos que cumprem promessas fartas, o Deus que troca uma bisca de arquétipos pelo desfiar das contas dum terço, o Deus que nos embala num berço, que olha com encanto para a pieguice hipócrita dum penitente mal arrependido, um Deus que apareça nos sonhos ao lado dum bandido, mas que ao deslizar pelos neurónios até pareça ferido. Prefiro ter um Deus que me sustente a um Deus que me faça pensar, prefiro um Deus de carrossel de feira a um Deus de labirinto. Prefiro um Deus que exista mesmo a um Deus que faça sentido. Prefiro um Deus de carrinhos de choque a um Deus de playstation.
Sim, prefiro um Deus que me abra os olhos, que me faça pestanejar, a um que me deixe de boca aberta, ou me faça bocejar. Prefiro um Deus de confessionário a um Deus de tábua da lei, mas prefiro um Deus de moral a um Deus de cultura. Antes um Deus que me prenda do que um que me dê soltura.
Fica giro dizer que conhecer ajuda a amar, que conhecer ajuda a acreditar. Mas agora apetece-me é dizer como ontem se podia ouvir “outra vez” ao Lawrence da Arábia: «my fear is only my concern». Também se pode gostar dum bom e desconhecido deserto. E, se calhar, só assim é que desconcertamos os escorpiões: avançando de medo em medo: «à minha maneira», como dizem os Xutos e Pontapés.
Volto a trás. Aproveito e cito um ateu deliciosamente à procura de nada (Beckett, em "Pioravante marche") : «Back is on. Somehow on». Teremos sempre de voltar a nós próprios para que isto de acreditar tenha alguma piada. A filosofia com Deus é essencialmente algo que me baralha, porque se alimenta do emaranhado da nossa condição, e mais especificamente do emaranhado do nosso pensamento. Filosofar é muitas vezes fugir de nós, dando a impressão do contrário. Uma espécie de erro do “espelho do espelho”.
Pois é, e nem sequer me seduz o Deus dos poetas, ou o Deus das crianças, ou o Deus dos místicos, quase que estou a dizer que prefiro um Deus cá das minhas coisinhas. Cada um ataca o deserto como pode. Cada um ataca a eternidade com a ropinha que veste, e não com as palavras de nenhum mestre, o que me faz – erraticamente - ir de encontro a Hölderlin: «Muito tem aprendido o homem/desde o romper do dia, desde que somos um diálogo/ E sabemos uns dos outros; mas em breve seremos um cântico», e agora reparo que esta última em alemão até soa mais gira: «bald sind wir aber Gesäng», ou seja, em tradução mais livre:"ó algodão ainda hás-de cá vir que eu faço-te em ganga". Poderemos ser "Gespräch" (diálogo), pensamento, razão, mas teremos de nos preparar para o dia em que seremos eternamente "Gesäng". É esta também a minha «imagem do tempo, que o magno Espírito amplia». O meu Deus é pois um Deus que (me) estica. “God is also Lycra” apetecia-me dizer, mas acho que assim também já me estou a esticar demais.
Quando comecei a escrever isto já calculava que não acreditaria em metade do que escrevesse, mas agora confronto-me com o facto de não saber qual é essa metade.
Não, acaba por não ser nada desse Deus pensado, filosofado, provado, ou reprovado, que eu gosto. Um deus assim até irrita. Desse Deus ninguém gosta, aliás nem sequer alguém acredita. Esse Deus só serve para ser contestado ou para vender livros falsos como se fossem atestados. Um Deus muito pensado fica soprado, inchado, e depois não escorre bem pela alma dentro, e então se chegou a entrar lá por aquele corredor estreito, é que só deixa mesmo espaço para o mero conceito. Ou pode ficar demasiado sólido, como uma carga pesada, e a alma mal se aguenta com tamanha empreitada. Ou então fica demasiado diáfano, tão esfumado que parece só lá estar a cumprir um fado. O Deus que eu gosto afinal é do Deus das beatas. O Deus dos desgraçados, dos que cumprem promessas fartas, o Deus que troca uma bisca de arquétipos pelo desfiar das contas dum terço, o Deus que nos embala num berço, que olha com encanto para a pieguice hipócrita dum penitente mal arrependido, um Deus que apareça nos sonhos ao lado dum bandido, mas que ao deslizar pelos neurónios até pareça ferido. Prefiro ter um Deus que me sustente a um Deus que me faça pensar, prefiro um Deus de carrossel de feira a um Deus de labirinto. Prefiro um Deus que exista mesmo a um Deus que faça sentido. Prefiro um Deus de carrinhos de choque a um Deus de playstation.
Sim, prefiro um Deus que me abra os olhos, que me faça pestanejar, a um que me deixe de boca aberta, ou me faça bocejar. Prefiro um Deus de confessionário a um Deus de tábua da lei, mas prefiro um Deus de moral a um Deus de cultura. Antes um Deus que me prenda do que um que me dê soltura.
Fica giro dizer que conhecer ajuda a amar, que conhecer ajuda a acreditar. Mas agora apetece-me é dizer como ontem se podia ouvir “outra vez” ao Lawrence da Arábia: «my fear is only my concern». Também se pode gostar dum bom e desconhecido deserto. E, se calhar, só assim é que desconcertamos os escorpiões: avançando de medo em medo: «à minha maneira», como dizem os Xutos e Pontapés.
Volto a trás. Aproveito e cito um ateu deliciosamente à procura de nada (Beckett, em "Pioravante marche") : «Back is on. Somehow on». Teremos sempre de voltar a nós próprios para que isto de acreditar tenha alguma piada. A filosofia com Deus é essencialmente algo que me baralha, porque se alimenta do emaranhado da nossa condição, e mais especificamente do emaranhado do nosso pensamento. Filosofar é muitas vezes fugir de nós, dando a impressão do contrário. Uma espécie de erro do “espelho do espelho”.
Pois é, e nem sequer me seduz o Deus dos poetas, ou o Deus das crianças, ou o Deus dos místicos, quase que estou a dizer que prefiro um Deus cá das minhas coisinhas. Cada um ataca o deserto como pode. Cada um ataca a eternidade com a ropinha que veste, e não com as palavras de nenhum mestre, o que me faz – erraticamente - ir de encontro a Hölderlin: «Muito tem aprendido o homem/desde o romper do dia, desde que somos um diálogo/ E sabemos uns dos outros; mas em breve seremos um cântico», e agora reparo que esta última em alemão até soa mais gira: «bald sind wir aber Gesäng», ou seja, em tradução mais livre:"ó algodão ainda hás-de cá vir que eu faço-te em ganga". Poderemos ser "Gespräch" (diálogo), pensamento, razão, mas teremos de nos preparar para o dia em que seremos eternamente "Gesäng". É esta também a minha «imagem do tempo, que o magno Espírito amplia». O meu Deus é pois um Deus que (me) estica. “God is also Lycra” apetecia-me dizer, mas acho que assim também já me estou a esticar demais.
Quando comecei a escrever isto já calculava que não acreditaria em metade do que escrevesse, mas agora confronto-me com o facto de não saber qual é essa metade.
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