Allez enfants de la tricherie

ensaio sobre a trapaça



Há muitos jogos que só valem a pena porque a batota é bem mais saborosa que a vitória. De facto, o que realmente me motiva em determinados jogos é a batota. Sim, poder fazer batota e não ser apanhado é de longe o mais interessante em qualquer desses jogos. É-me absolutamente indiferente se a batota serviu para ganhar ou para perder, o essencial é fazê-la, fazê-la bem feitinha, é ter enganado os outros e ninguém ter dado conta de nada. Sejam olhinhos, sejam cartas marcadas, sejam agilidades de mão, sejam distracções simuladas, sejam cúmplices bem treinados, sejam convicções teatralizadas; não ser caçado e fazer o “golpezito” é de longe a melhor coisa que um jogo pode ter, e então ouvir dizer «mas como é que este sacana...» é uma verdadeira bênção dos dias.



Não, não é o bacoco amor à subversão das regras, é o amor desinteressado ao jogo, ele mesmo, ao jogo de fintar a vitória desprezando-a e trocando-a por um prazer ainda maior, o amor ao jogo de ludibriar um adversário tornando-o um figurante, um mero cooperante numa espécie de brinquedo muito nosso, numa espécie de “Onanismo ‘R’ Us”. O batoteiro militante e lúdico, é uma espécie de ingénuo profissional e simultaneamente uma espécie de perverso de cartilha, alguém que gosta de se sentir como uma ama-seca que leva os miúdos para o paintbal. Mas, se calhar, não passa duma forma de ser solitário que precisa compulsivamente dos outros para cumprir essa condição.



E é andar sempre no risco, claro. É saber sacrificar a reputação, é saber ouvir um risinho algo desconsolado, algo desinteressado, sempre que dizemos que «também queremos jogar», é não nos podermos dar ao luxo de ficar enervados por estarem sempre a olhar para nós desconfiados, é saber conviver com a ideia de que não somos realmente importantes, e que apenas vivemos das distracções e da incompetência dos outros num parasitismo não biológico, é ter de suportar como que uma alegoria da caverna vivida num duplex com vista para a serra de Sintra a arder mas num postal ilustrado. É o eterno flirt, que às vezes douramos de arte, mas que não passa de espuma, de mero aparte.



Este estado da natureza (só para não estar a falar sempre da alma senão esta desgasta-se) - a batoteirice – tem, no entanto, uma “virtude” suplementar e talvez inesperada: põe-nos a viver no difícil estado de “duplo enfoque”: na “regra” e na “desregra”, ou no “prazer” e na “técnica”. É um treino para estar concentrado e descontraído ao mesmo tempo. É saber “estar” e “não estar” ao mesmo tempo, é ser espectador e artista na mesma peça.



Este batoteiro-por-amor-ao-jogo-feito-arte-feito-vida é aquele que faz jus à eventual e duvidosa etimologia da palavra vinda do italiano “batosta”: o golpe dado na mesa pelo jogador que assim fingia ter ganho; é pois aquele que encontra a sua máxima satisfação quando, tendo perdido o jogo, faz os outros ficarem convencidos que o ganhou sem sequer esboçarem a mínima intenção de ir confirmá-lo. É uma espécie de batota que se tornou de tal forma viscosa que penetra na confiança dos adversários, que lhes mina a racionalidade e os transforma em anões como acontecia às crianças que ficavam tempo demais na “Ilha dos Jogos”. E isto agora até me relaciona com uma curiosa coincidência entre Montaigne e JLBorges que, sem lhes chamarem batoteiras, dizem que os jogos são os trabalhos sérios das crianças. Assim é o batoteiro: o único que leva a sério o jogo.



Por isso é que “esta” batota não é aldrabice, não é subversão, repito-me, é simplesmente estar dentro e fora como que querendo demonstrar involuntariamente que nada é o que é.



Só que a verdade, verdadinha, é que o batoteiro será sempre um eterno medroso muito bem disfarçado e convencido de malandro atrevido e espertalhão. E fazer batota será sempre a irrelevante presença de alguém que tem medo de arriscar uma despedida.

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