Praticamente só bola

1.

Não me lembro da primeira vez que vi o mar, não lembro da primeira vez que vi uma mulher como mulher, não me lembro da primeira vez que pisquei o olho, não me lembro da primeira vez que menti, não me lembro da primeira vez que comi ovo estrelado, não me lembro da primeira vez que pensei, não me lembro da primeira vez que marquei um golo, não me lembro das primeiras vezes, gaita para isto. Para que serve a memória se não nos lembramos das primeiras vezes.



2.

Só que eu também não me lembro quando vi tulipas pela primeira vez, mas lembro-me quando as vi a última vez: foi como se tivesse sido a primeira. Será isto a vitória do coração sobre a memória. Não estava à espera, confesso.



3.

(E corrijo-te: Se é assim que atiras «o gelo da tua racionalidade» em «confronto contra o papel», se é assim que «matas emoções», se é por isso que “dizem” que és «cobarde na tua coragem», deixa-me que te diga: abençoada «docilidade insolente»)



4.

Nem todos os quadros de Fontana representam golpes rasgados na alma, nem todos os de Klein são bocados de lágrimas derramadas em Canson; Nem só as bandeiras revelam uma pátria, ela também se revela na ansiedade por causa dum jogo da bola, no simples desejo de ganhar aos “outros”. Hoje apetecia-me ser zarolho, e nadar só com um braço, segurando no outro um cachecol verde e encarnado, mesmo que tudo se esfume daqui a umas horas, ou dias, ou semanas. É essa a nossa condição, e condição é diferente de fatalidade, como pensar é diferente de ir atrás das ideias.

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