O jogo da glória



Serei sempre muito tentado a negligenciar o conhecimento e a reflexão quando são essencialmente de “base histórica”, principalmente porque a ignorância a isso me urge, mas também porque eles têm tendência a suportar a pior das arrogâncias: a que favorece a idolatria dos factos, ainda para mais retirados do seu altar preferido que são os biombos do tempo, mesmo que bem aparelhados pelos relicários de turno. (estas analogias clericais já me estão a cansar um pouco)

Nos dias de hoje, em que parecia podermos já nos ter libertado do recalcamento que provocam as “rotas das especiarias” não exploradas, e assim deixar de viver desorientados, afeiçoámo-nos à instabilidade topográfica e escolhemos passar a viver agora melancolicamente desocidentados; algo que me chama à semelhança de “desossados”, por isso é que somos bons de comer, bons de mastigar, bons de fazer aquelas bolas de carne que embucham os miúdos e enojam os pais. Tendemos para meros ruminados. Mas até gosto da ideia, desde que não me cuspam dum sítio muito alto.



A história deserda-nos constantemente, e se confiamos demasiado, ali sentadinhos em comiseração ao redor do seu leito com festinhas interesseiras, acabamos por descobrir que ela tinha amantes espalhados por todo o lado, e que já tinham tratado das burocracias todas em seu proveito. Apeados, e recriminando-nos por não ter tratado da nossa vidinha a tempo, vamos logo procurar outra moribunda histórica que esteja a ponto de bater a bota e de nos deixar uns títulos ao portador que sejam de fácil endosso e decente liquidez. Somos irremediavelmente uns permanentes herdeiros à procura de consolo em forma de destino testamentado. Eu também adoraria ser homem-objecto duma Dona Cronológica, velha, rica e apaixonada por mim, que fosse previsível, e então eu lhe saberia facilmente amansar os caprichos e daí partir para satisfazer os meus. Punha-a dependente dos comprimidos, dados por mim às horas certas, rogados por ela em choro desesperado, face às dores dum tal de futuro que não havia maneira de aparecer em forma de príncipe encantado aos beijinhos e empinado num cavalinho de cortesia.



O novo dicionário não ilustrado hoje limitou-se a lançar um só dado, e esperar que a sacana da velha apareça com o outro. (Cheira-me que ela atabalhoadamente o misturou com a placa, dentro daquele líquido esverdeado que é a análise histórica, meramente desinfectante, pois nem sequer dá para a velha comer um prego em condições). As entradas 746 a 751 mostram-nos o que faz mover a história. E mainada (como agora fica giro dizer-se).



A vontade férrea dum povo – Quando formamos uma corrente que tudo leva à frente, tornamo-nos grilhetas uns dos outros, e amontoados à volta duma bandeira abanamos o rabo da história fazendo o efeito de matracas amestradas. O efeito dos peitos em quilha recorda-nos que poderemos ser apenas perus desfrutando da derradeira bebedeira.



As Coincidências – A geometria desenvolve-se mais com tangentes e secantes do que com paralelos-pífios



A visão dum homem – Com as armações da moda, qualquer míope faz figura de estrela de cinema em ascensão, desde que lhe arranjem um bom perfil, uma amante em desvelo permanente, e saiba fazer boquinhas melhor que o Bruce Willis e o Richard Gere. Piscar bem o olho será sempre vantagem.



O jogo dos interesses cruzados – Num jogo do galo em que as bolas se amancebam com a cruzes, o que é preciso é não deixar entrar nos quadradinhos os símbolos das brincadeiras da concorrência.



O movimento incontrolável das massas – Temos de mexê-las com a delicadeza e no momento certo para ficarem soltinhas, mas temos também de tirá-las do caldeirão da história a tempo de não ficarem pastosas. Valerá talvez a pena besuntá-las de ideologias amanteigadas um pouco antes de servir. Mas já é uma questão de gosto. E de como antes lhes escorremos a vontade de se pirarem.



Uma alcova bem alcatifada – Onde um matreiro cochicho parece um coice de artilharia, onde um ligeiro soprar nos olhos transforma um torpedeiro num catamaran, e onde uma suave e deliciosa festa na cara põe um segredo de estado ao nível dumas trufas de chocolate. O poder serve-se másculo e frio, mas está sempre refém dum banho-maria.

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