O dicionário não ilustrado
Tenho tendência para “desefemerizador” (mas não maníaco) e para desfrutar mais das discretas continuidades. No entanto, não consigo ficar alheio ao facto de ser no dia de hoje, em que a vida política me está a fazer mais comichões que a conta, e do que eu alguma vez esperei, que faz um ano a 1ª entrada do dicionário não ilustrado. (Mas isto passa, claro)
É de facto um título um bocadinho presunçoso para o que muitas vezes não passou dum mero jogo de palavras que prestavam vassalagem aos efeitos do humor fácil, ou se arrastavam numa esterilidade pardacenta.
Felizmente, ou infelizmente, não sei, sou pouco dado a reflexões do género “nunca pensei chegar aqui, blá, blá”, blá”, ou “fui variando o estilo para sobreviver, blá, blá”, blá”, ou mesmo “não me deixar completamente condicionar pelos acontecimentos era essencial blá, blá, blá”, ou então “procurei que os assuntos não se deixassem comer pelo tempo blá, blá, blá”. Mas a verdade, verdadinha, é que fui apenas deixando correr o marfim. E assim continuará. Se Deus quiser. Goela acima, goela abaixo.
Hoje o dicionário não ilustrado auto-celebra-se saboreando, como sempre mas hoje sem grande vontade de se lamber, a podre fermentação dos dias. Nas entradas 778 a 788; por incompetência nem hoje cheguei a um número redondinho
Representatividade – Freud repesca o conceito da representação para designar a forma como os recalcamentos ocupam o espaço psíquico do inconsciente, a ciência política transforma-o, para designar como é ocupado o espaço do poder, deixando muitas vezes as consciências de boca aberta.
Poder – Estado da natureza em que o inconsciente parece um intestino em espasmo constante, e o consciente uma bexiga em permanente irritação. Colocado no divã freudiano temos de garantir sempre um autoclismo à mão, porque o aparelho digestivo gosta imenso de conviver com o urinário.
Honra – Químico que se passeia pelas provetas do poder, mas em contacto com o ar evapora-se de tal maneira rápido que, vai-se a ver, eram apenas gases emitidos pelos interesses de turno.
Cargos Públicos – Local de natureza paradisíaca, mas que muitas vezes cheira a curral quando os deuses nos lembram que somos apenas ruminantes do feno dos dias.
Respeito pelos outros – Valor obscuro de que só alguns esotéricos e bêbedos de puritanismo se lembram, porque vistas bem as coisas nenhum quadradinho dos boletins de voto tinha esse nome atrás
Estado soberano – Conceito de viscosidade variável, que necessita bastante do pó de talco da relatividade, para não fazer assar muito as partes baixas do poder, que abanam indecorosamente de ....instituição em instituição ( retive a obscenidade à conta da solenidade do dia, e fiquei-me apenas pela terminação)
Serviço público – O verdadeiro servicinho
Compromisso com os eleitores – Acto de grande magnanimidade, só comparado àquele que temos com as flores, quando arranjamos alguém para as regar sempre que vamos para uma passeata mais longa
Desencanto com a política – Destino dos parvos que, já adultos, ficaram à janela, gastando os cotovelos, pensando que as baladas dos novos mestres do engate não eram em playback, e que o versejar era genuíno. Felizmente há sempre a hipótese de voltar aos amores de adolescência.
Classe Política – Nos saraus da moda é a que anda melhor de pontas. Mas quando o ar começa a ficar abafado, os paizinhos na bancada reivindicam logo a entrada das majoretes de turno, que actuam como os novos sistemas ecológicos de arrefecimento industrial: «Purifica, arrefece, ventila e evacua»
Carreira Política – A que passa pelos apeadeiros dos "bem-encarrilados", dos "bem-encapotados", e dos "bem-encavalitados". Geralmente não pára na dos "encurralados", a não ser para abastecer, ou fazer a sua mijinha, claro.
Há é verdade....em relação às opções aqui de baixo, a minha preferida é sem margem para dúvidas: o golpe palaciano. Desde que não haja derramamento de sangue, claro. Já chega de porcarias.
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