O novo dicionário não ilustrado tem mesmo que fazer um parêntesis na futilidade dos factos e avançar para a angustiosa, mas heróica e virtuosa vida interior. O homem é que é um bordel de inevitabilidades morais. Mas ficam mal numa capa de revista. ( entradas 238 a 245 )



Preguiça in (acordar e levantar-se da cama)– Momento em que descobrimos que não é o sonho que comanda a vida, e em que desconfiamos que o valor da gravidade é muito superior àquele que nos andaram a vender.



Sofrimento in (levar os filhos a fazer cocó numa casa de banho pública)– Momento empolgante da vida dos pais que os leva a reflectir na procriação e a chegar à conclusão que é uma realidade a exigir reformas profundas. O homem deveria alegar incompatibilidades.



Responsabilidade in (tomar consciência que a filha anda a namorar)– Situação de peculiar nervosismo, que nos leva a oscilar entre as medidas de prisão preventiva ou a escuta telefónica; mas geralmente ficamo-nos pela acolhedora ignorância do segredo de justiça, própria das fases de instrução.



Generosidade in (ter de despedir um empregado que é pai de família)– Situação de confrangedor misticismo, em que o mal encarna a figura de um anjo da guarda, que sendo o guardião da economia da salvação, lê o responso do deficit ao mártir que encomendou nos saldos.



Humildade in (perceber que afinal não tínhamos percebido nada)– Momento em que temos de nos convencer que apenas possuímos um pensamento de marca branca. Acabaremos sempre por ter de pôr o nosso génio singular em ralenti e voltarmos a engrenar nos livros infantis.



Sobriedade in (ter sempre de dizer qualquer coisa)– Quando se vive no registo ansio-vertiginoso de ser ouvido, respeitado e venerado, o ventriloquismo seria uma bênção de deus. Incógnitos, testaríamos o efeito do fraseado. Mesmo assim existem alguns “massajadores da moral” que são especializados em provocar o pudico espanto da boca aberta, mas também acabam por viver dependentes da pele eriçada da clientela.



Paciência in (o electrodoméstico enervantemente avariado)– Este elemento do atribulado imaginário doméstico serve para se partir, estragar, mas pelo menos raramente se perde. Vê-se bem que as teorias mecanicistas tiveram sucesso antes da invenção do frigorífico encastrável. E nenhuma consciência tranquila se pode “ficar a cagar” para um autoclismo a pingar constantemente.



Temperança in (não ser capaz de viver sem satisfazer a comezinha curiosidade)– Esta curiosidade é uma das pulsões mais negadas, mas também das mais reprimidas. Muitas vezes disfarçamos exercitando regularmente. À força de tanta repetição pode aparentar experiência científica. Ou mesmo lei da república.

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