Bolchevick vaporub



A palavra do ano é obviamente bolchevismo. Podemos mesmo promovê-la a conceito, um estádio superior a que ascendem certas palavras sobredotadas, algo a que por exemplo opiniondesmaker teima em não conseguir.
A maior riqueza do bolchevismo é incorporar uma ideia e sempre o seu contrário. Reparem na génese: uma maioria que era minoria. Reparem na sua afirmação: um progresso que se confirma num dos maiores conservadorismos da história. E agora a sua tomada de poder: uma revolução que afinal era um golpe, e um golpe que se fundamentava numa revolução.
Querem mais? Que fazer, tenho mesmo de vos dar mais.
Que ateus mais religiosos, hem I? Que puritanos mais debochados, hem II? Que intelectuais mais carroceiros e carroceiros mais intelectuais, hem III? Só não tem um piquinho de fascínio por bolchevicadas quem nunca meteu o dedo às escondidas na taça da mousse.
Agora não me interessam as purgas, os gulags e os holodomores porque acabei de almoçar. Canja. É impossível não ficar com o espírito amaciado depois duma canja quente num dia de introdução ao frio. Interessa-me antes a eficácia dum romantismo cruel. A piedade é um valor intermédio, sabe-se desde a catequese mais básica, os seres humanos podem estar destinados à salvação (convivência eterna com Deus), mas é incompatível com a sanidade mental que isso se consiga em regime de perpétuo aniquilamento do glorious side da vontade humana, aquela marca que nos distingue das moscas e dos tigres.
Curiosamente o bolchevismo desenvolve-se numa sociedade onde o espiritismo tinha tomado conta de muitos ramos aristocratas e, assim, não era tão difícil demonstrar que o domínio da história se poderia encontrar também entre uma mesa de lunáticos informados e alienados. Aqui está outra contradição mister. Não me lembro de facto de nada que incorpore tão bem os contrários como o bolchevismo, talvez o cristianismo. Que o Altíssimo me perdoe mas ninguém deu tão bem a outra face como o V.I.U. Nunca um mal subjectivo esteve tão afastado do mal absoluto.
As análises do centenário do sucesso do bolchevismo servem para quase tudo (aqui está outra prova), mas o mais sensacional é a de que se fica sempre com a ideia que o inevitável era evitável. Um consolo para todos, uma irritação também para todos. Helàs.
Desde o declínio do czarismo até ao esplendor do estalinismo a história desenrola-se toda em torno de personagens de aura incontestável  a viver à conta de um povo tão contraditório como o próprio bolchevismo. Hoje quando pensamos num russo vemos um camponês ou um bombista? Um mafioso ou um roskolnikov? Um oligarga ou um rasputine? Assim não dá. Qualquer português é um zé povinho, desde o Granadeiro ao Valentim Loureiro, qualquer portuguesa é uma Maria da Fonte e uma Maria de Lurdes Modesto em simultâneo, mas há muito russo que nem é putin nem é soljenitsine.
Claro que a explicação clássica é que o bolchevismo nasce numa terra única que nem é oriente nem é ocidente, o pobre Nicolau II, aliás , dizia que era um bocado do mundo e não um país. O que fazer com tanta contradição, com tantos opostos, com tanto conteúdo peripatético?
alexandra kollontai
Alexandre III dizia que os únicos aliados da Rússia eram o seu exército e a sua marinha (ambos próximos da mediocridade) , o bolchevismo mostrou que os únicos aliados são a ordem e a desordem. E só por isso estará na história de forma tão perene quanto o big bang ou a descoberta da seleção natural.
E o que fizeram os bolcheviques com a famosa vastidão? Enfiaram-na numa gaveta burocrática. E o que fizeram os bolcheviques com o misticismo? Enfiaram-no no iluminismo controlado. E o que fizeram os bolcheviques com os abusos de vodka e o sexo? Foderam e beberam-no (não por esta ordem) como se fosse uma imposição proletária.
Em geral olhamos para eles com inveja. Negado e Reprimido, eu sei. A mesma inveja que todos os homens reprimem quando observam um amigo que tem imenso sucesso com as mulheres. E lá está uma conclusão sem contestação: o bolchevismo produziu os homens e mulheres com mais sex appeal da história.

E como diria um velho bolchevique se ainda hoje existisse disso: e quem tem tosse que tussa.

Decassilaba-mo, meu Amor



A Primavera vai-se embora hoje sem glória. Por acaso acompanho esta despedida com boa música, mas já lá vai o tempo em que tinha estilo falar das músicas que ouvíamos enquanto se escrevia. Hoje é muito mais difícil ter estilo. Vejam, até para se dizer que se gosta de alguém. Como é que isso se faz com estilo? Não conseguimos competir com o spotify , nem com os engraçadinhos da freguesia. Como fazer? Um poema, uma aguarela, oferecer um livro, preparar um assado, lançar uma revolução? Eram bons os tempos em que bastava ser revolucionário para seduzir, hoje termina mais uma primavera e até o pôr-do-sol por mais bonito que seja antecipa mais canícula que mamilos espetados. Não desanimem irmãos e camaradas, as mulheres voltarão a ser o que já foram quando perceberem que é melhor ser bibelot do que lenha para queimar. Vamos ao que interessa. Como recuperar uma primavera que se perdeu? Ou melhor, como recomeçar o que nunca terminou? Como dar o braço a torcer sem doer muito? Como mostrar que todos podemos ter razão mas eu tenho mais razão que o outro. Como pedir justiça sem precisar de balança?
Tantas interrogações a estragar o texto. Nem umas personagens de ficção para disfarçar, nem uns trocadilhos para atenuar, nem umas tiradas latimfúndias para provocar aquele ar de enjoo que apenas as mulheres bonitas sabem fazer. Sabem, sabem.
É por isso que de facto a merda da poesia é uma arte maior, caralho. Aquilo não se parece com nada, mas nem a música chega lá perto. A música é coisa de pele, não se deixem enganar. Com a poesia nem é bem uma sensação, ou um estado de espírito, nem sequer é uma porra dum  je-ne-sait-quoi. E quando se está à espera duma palavra e sai outra que produz um efeito melhor e inesperado. Cabrões. Aquilo é sorte. Sim, mulheres, aquilo é pura sorte, aquilo são reformados de euromilhões disfarçados. E quem tem sorte naquilo não tem em mais nada, acreditem, acreditem no povo que o povo não falha.
Uma sílaba, outra sílaba, outra, e outra. E até é fácil. O que é que custa um verso, porra, pensem, gajas parvas! Dez silabas não valem um beijo. 
E há que tempos que não se me rima um beijo em condições. 

Foste levada por algum poeta para um canto escuro e ele enfiou-te umas palavras pela goela abaixo enquanto lhe oferecias o que me negaste, estúpida.

O anti tweet




Um pouco de desprezo pela sobriedade nunca fez mal a ninguém, e o blogger está para o Twitter como a extravagante alegria meridional está para a sobriedade nublada do norte. O twitter foi feito para mentes que não podem ter muito tempo a cabeça ao sol porque a moleirinha começa-lhes logo a latejar. Aqui não, aqui qualquer frase arrastada e inconsequente nos serve de sombra e não precisamos de estar sempre em refresh. Podemos deambular pela ligeireza, cagamos para o straight to the point, e podemos beber e flirtar sem que nos venham esfregar com resgates na tromba. Aqui os Djisselbões não nos podem vir foder o juízo porque nos viramos imediatamente para uma citação da República de Platão, chamamos Nietzsche à colação e seguimos para Bingo. No Twitter temos logo que nos enervar, sacar de dois gifs e fazer umas piadas à pressa. Aqui não, aqui temos uma espécie de tweets tântricos, vamos respondendo às apalpadelas, testando as volumetrias (palavra impossível de usar o twitter porque consome logo 11 caracteres), observamos as pernas a abrir sem precisar de ir logo espreitar se há favoritos pélvicos à mostra. Aqui podemos enrabar um Djisselbão sem precisar de ser ordinários, sem nos mostrarmos muito susceptíveis, podemos arrastar-nos nas analogias, intercalar um quadro dum flamengo qualquer com uma gaja bêbeda, e isto enquanto toca um disco inteiro da Laura Marling. Deixamos passar o tempo sem ficar com remorsos, porque sabemos que depois podemos sintetizar tudo em 140 caracteres sem ter mais despesa, nem nenhum cabrão capado da flandres nos vir apontar o dedo.