Murmurando entendimento V – os princípios de Dona Confiança


A Família Confiança era uma família muito pura. Mesmo daquela pureza que já não se fabrica e só se encontra ou em alfarrabistas de p’reza ou em boutiques de produtos tradicionais. Está inclusivamente em fase de lançamento uma cadeia de lojas: ‘Confiança Portuguesa’. Não vai vender galos de barcelos, nem latas de sardinha, nem pães de deus, nem mesmo rendas da madeiras, mas antes uns pacotes com um sortido de confiança composto por: 1 Constituição encadernada em lombada francesa, um cartão da adse, um cartão de eleitor, um cartão de descontos do pingo doce, e uma ficha de inscrição no acp.

Mas voltemos à família Confiança, mais especificamente à menina Confiança. Nasceu ali à rua do Arsenal, entre duas lojas de bacalhau, bem pertinho donde enfiaram uns tiros no bom do dom Carlos e seu primogénito amado, e bem cedo se revelou uma moça que nunca quebrava as expectativas de ninguém.

O seu primeiro namorado, César Camacho, a primeira vez que lhe tentou dar um beijo levou com uma chave de fendas no olho esquerdo e ainda hoje vende as melhores castanhas assadas do País à porta do cemitério da Ajuda. Luís Gonçalves, o segundo, ainda ia com a sua mão direita a pouco mais de 3 cm acima do joelho de Confiança quando esta lhe enfia com uma faca de barrar manteiga pelo ouvido esquerdo, deixando-o numa espécie de permanente otite com pernas. Já tendo cristalizado a sua imagem de amante cruel, permitiu a primeira cópula digna desse nome a Gustavo Meirim, não deixando de posteriormente o humilhar publicamente revelando detalhes não dignificantes e ainda menos glorificantes, como sejam, um testículo ligeiramente pontiagudo que incomodamente a distraia no momento de gratificação. Gustava apenas conseguiu ter uma nova erecção já com 73 anos depois de uma dose de viagra intravenoso que lhe foi administrado a troco de um comodato de duas propriedades rústicas no sobral de monte agraço.

Menina Confiança, entretanto Dona Confiança, tinha assim bem sedimentada a fama de que quem lhe tocasse nunca mais se esqueceria. Sou uma mulher de princípios, dizia de forma quase solene, o meu corpo é como se fosse um artigo constitucional.

É evidente que este comportamento de Confiança (Fia, para os amigos que, obviamente, não tinha) tanto afastava clientela como atraia outra mais afoita. Foi assim que um belo dia, dois amigos, Pedro e Paulo, decidiram fazer uma aposta: qual deles a conseguiria conquistar sem que levasse mazelas significativas para casa.

Primeiro foi lá Paulo. Levava um relógio em contagem decrescente (quanto tempo faltava até que conseguisse molhar a sopa) e apresentou-se insinuando que tinha um dedinho maroto que fazia milagres, inclusivamente já conseguira transformar um protectorado numa casa de fado. Confiança olhou para ele com desdém e perguntou-lhe logo se o dedinho não lhe cabia no cuzinho. Espantado com a franqueza, Paulo decidiu que ainda tinha de tomar um bocado mais de balanço e, com o dedinho entre as pernas, foi fazer antes uma reforma de estado.

Pedro observou a cena à distância com uma certa apreensão, mas pensava ter uma arma secreta: a sua franja arrebatadora. Quando chegou à fala com Confiança todo ele eram falinhas mansas e não tardou a conseguir um tete a tete. Não prometia nada, sabia de antemão que ela tinha umas fornicatio legis muito restritivas mas ele estava disposto a todos os sacrifícios para cumprir (‘foder com jeitinho’ era a frase inspiradora que usava de si para si)

Dona Confiança pareceu claudicar com a primeira abordagem. Era um rapaz de indole respeitadora, as suas intenções apresentavam-se como das melhores, nem no inferno se encontrariam daquelas certamente. Nas primeiras horas a estratégia de Pedro começou a dar resultado, e um redondo e prolongado beijo parecia ir selar um compromisso entre Pedro e Confiança, com esta a permitir avanços pela sua constitucionalidade dignos dum coup d’état - olha para as minhas maminhas como se elas fossem duas bastilhas, chegou mesmo a sussurrar-lhe ao ouvido, enquanto Pedro já se via a mascar bastilhas.
Mas como qualquer macho, com ou sem franja, com ou sem agenda libertina, Pedro sabia que teria de ir testando passo a passo Confiança para ver até onde poderia ir - se me deres a tua betesga eu serei o teu rossio, foi a vez dele sussurrar. Pensava ele que depois da sua mão já ter poisado por terrenos de reserva natural, poderia doravante urbanizar e em propriedade horizontal por qualquer lado sem precisar de comprar maiorias na vereação. Quando a coxa já é um direito adquirido por que carga d’água terá um homem de recuar para o joelho, perguntava-se.
Mas Dona Confiança era muito zelosa dos seus princípios e estava convicta de que tinha adquirido um estatuto de inviolável que não poderia perder por qualquer franja por mais voluptuosa que ela fosse.
E assim, estava já Pedro a alçar a perna para um movimento mais acrobático quando Confiança se lhe escapa por entre os rins e decide ir acertar linha das sobrancelhas e pintar as unhas de outra cor, fazendo-o estatelar-se no arraiolos que nem um Junot de porcelana.

Será desprezo genuíno, será jogo, será apenas prudência, será capricho, ruminava Pedro por entre os ossos doridos a fazer de escombros. Mas Dona Confiança já estava noutra, remoçada e de peitos ao nível do entrecot, deixou Pedro a lamuriar-se com Paulo que entretanto já declarava aos quatro ventos que ela afinal nem era grande coisa e que mais valia uma pila na mão que duas vulvas a voar, ou melhor, um imposto novo na mão que duas constituições velhas a voar.

2 comentários:

maria disse...

hummm, os tempos vão bons para arrazoados ;)

por aqui deixo os meus votos de Feliz Natal e alegrias muitas para dissipar os nevoeiros que nos cercam.

beijinho da Maria

aj disse...

Ora, um arrazoadozinho de berbigão sabe sempre bem!
Votos de Boas Festas também, beijinhos