Calixto Semedo desistira de observar baleias desde que
encontrara Luísa Ventura a tomar chá em Porto Formoso. Arreliada com a sua
sorte Luísa fora desopilar ao sabor de chá verde com jasmim e quando viu que
Calixto também para ali estava a
pedir um desconto de tempo ao destino resolveu abordá-lo. Estar para ali é diferente de simplesmente estar ali e Luísa tinha esse marcador na gema, pois descobria
sempre os que estão para ali por
entre os que se limitam a estar ali,
seja ali onde for.
Calisto estivera a observar baleias na Caloura toda a manhã
e tirando ter sido atropelado por uma vaca sem nome nem badalo, nada a sorte
lhe tinha colocado na ponta dos binóculos. Sem tendência para as costumeiras neuras
insulares pegou na trouxa, respirou fundo três vezes testando o bom tempo nos
canais e foi tomar um chá que lhe diluísse o que sobejara da bucha.
Pelo caminho rezou três avé marias com um olho no
promontório e outro numa ciclista irlandesa que descia a ladeira sem travões na
roda da saia que assim descobria uma bênção duplamente arredondada sur selle
en cuir, respirou outra vez fundo sem especiais reacções expectorantes e
alheado de restrições ditadas pela deontologia dos vigias, esticou distraidamente
a vista para um mar livre de cetáceos, preparando-se para trocar os binóculos
por uma chávena de folha fervida.
Quando Luísa lhe deu o primeiro beijo arrepiando um caminho
que levara séculos a esbater por entre náufragos, vulcões e laranjas, Calixto
despertou do seu estar para ali e
passou a estar mesmo ali - mas ficou
logo num ali que faz favor. Luisa, ex-vereadora
sem pelouro, experimentada em manter assuntos pendentes em estado de graça, agora
em fase de confronto com a realidade, perguntou-lhe se entre as mamas dela – ‘estas
bolinhas aqui, mas não para aqui’, foi em rigor a expressão - e um mar em
estado bulímico onde é que ele mais gostaria de procurar segredos da mãe
natureza. Avesso aos mais ténues sinais de paganismo Calixto retirou os
sentidos do Atlântico e desfazendo-se de todas os catarros submeteu-se aos
desígnios dos deuses que escolheram a carne como porto de abrigo.
Entre folhas de chá e um ou outro delicado movimento de mãos
& lábios, Calixto e Luísa, Semedo e Ventura, respectivamente, decidiram que
já estavam criadas as condições para abordarem uma lagoa de médio porte e
decidiram enfrentar os auspícios do Congro, num fim de tarde inesperadamente bem
servido pelo sol em formato raio.
Depois de dois ou três esboços de relacionamento de índole flesh & juice, sem que nada o
estivesse a prever, Calixto começou a sentir a nostalgia do cetáceo: um ardor
na garganta, uma tosse seca mas contínua, uma respiração ofegante que lhe
arranhava intermitentemente a entranhas superiores. Luisa, ainda possuída pelo
lastro da carne, pensou que se tratava dalguma alergia momentânea, resultado de
vapores sulfurosos menos tolerados por um habitante de promontórios e postos de
vigia. Mas nada a fazer, Calixto estava para ali de rastos.
Subiram lentamente de mão dada pelo trilho até à estrada,
Luisa ainda tentou dois ou três afagos no sentido de lhe acalmar as ‘inges (far
& lar), mas nada, era certo que enquanto Calixto não avistasse um cachalote
aquela sensação não lhe passaria, nem mesmo quando Luisa, numa encantadora,
arrebatadora, manifestação de carinho, lhe lembrou que as suas coxas também
eram rechonchudas, roliças, bojudas, nem mesmo assim Calixto retomou uma
respiração limpa e desfricionada.
Já estava a escurecer quando chegaram ao alto da Caloura. Calixto
apresentava um estado lastimável, com uma respiração rosnada e um olhar de
carneiro bem morto. Luisa sentia-se para ali impotente, se pudesse transformava-se em
broncodilatador mas Calixto apenas lhe dizia deixa-me para aqui com as minhas baleias, embebido na mística do
incompreendido, incapaz.
E Luísa, que também tinha mais que fazer, deixou-o para ali.
2 comentários:
Pensando bem... o Calixto tem um ou outro exão de Calimero nos genes, não?
L.
todos os homens têm metade de calimero e metade de Pinóquio
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