O caderno

Para Samuel Bonifácio chegara o momento em que tinha decidido casar-se. Era um homem de critério, possuidor dum cepticismo de cariz peri-científico e com um processo de decisão elaborado e de concomitâncias várias. Para primeiro modelo tinha escolhido o género 'mulher bonita'. Seu pai, de natureza mais prática, e depois de conhecer a escolhida, disse-lhe o primeiro óbvio das teorias do gosto: «com muito bonitas não dura». Mas Samuel seguiu o seu desiderato. Durou 3 anos e 3 meses, não parece terem ficado marcas na sua cartografia íntima e o seu sémen também não semeou. Reflectiu, todavia, e encontrou as razões no cabaz do costume: capricho e ciúme. Seguiu assim para a segunda hipótese na calha, uma mulher de cariz mais 'companheiro', da qual a sua mãe o alertou: «quando fazem  muita companhia depois não se distinguem muito dos spaniels» Como era de esperar Samuel seguiu o que tinha traçado e 4 anos e picos depois voltou ao estado civil de consumidor. As razões desta vez eram também clássicas: não ultrapassando muito a fronteira da companhia há sempre algo que murcha. Daí que a terceira modalidade do seu plano para a vida conjugal fosse previsível: critério: sexo. Desta vez o pai ainda lhe disse: é um bom critério, mas. Samuel seguiu, fodeu o que tinha de foder, como e quando nunca foram variáveis que atrapalhassem e durou 3 anos quase completos. Da introspecção saiu um veredicto: a pila é o orgão menos exigente do corpo e não pode servir de critério. Em quarto lugar estava a hipótese 'amor'. Samuel nunca pensara ter que chegar a esse ponto e inclusivamente só conhecia o conceito vagamente de ouvir falar em livros e filmes e de raspão por uma prima afastada que era frígida  e se tinha casado com um anestesista. Depois da mãe lhe ter dito que era um critério menos válido que a capacidade para fazer uma boa cabidela, mais uma vez seguiu em frente e, depois duns esponsais bem mimosos, foi trocado, pela primeira vez, por um playboy lituano ao fim de 2 anos e meio. Estranhou que o vulgo encornanço tivesse surgido apenas com este critério, mas da sua reflexão concluiu que o tal de amor é algo com bases pouco sólidas e que não deve extravasar os limites da arte ou, numa ou outra excepção, servir apenas de bónus para usar em fase de menor liquidez de recursos. Com quinto critério apresentava-se uma terminologia vaga que indicava ' 'admiração e respeito mútuo'. Como a definição de critérios já tinha muitos anos Samuel chegou a pensar que se teria tratado duma espécie de conceito residual, o equivalente ao descargo de consciência usado na psicologia de supermercado. Há que tentar, foi o que lhe disseram alguns amigos pois os pais já tinham mais que fazer. Depois de 3 anos promissores deu-se o fenómeno da dissolução da admiração, algo como um orgasmo que vira arrepio de frio, e depois de verificada a inoperacionalidade carnal do processo Samuel virou-se para o sexto e último critério, um curioso: 'bons negócios comuns'. Tratava-se de colocar a finança num patamar adjacente à moral, e fazer dela uma espécie de átomo de carbono do erotismo organizado. Inesperadamente, ou talvez desesperadamente, Samuel avançou para esta derradeira experiência com um afã de sucesso que não tinha experimentado nas anteriores. Depois de terem explorado juntos um negócio de decoração de águas furtadas não conseguiram resistir a um contentor de edredons de algodão chineses que se revelou ser de fronhas de poliester paquistanesas. Romperam definitivamente junto dum quartel da guarda fiscal 3 anos depois do dia da escritura de constituição. Samuel já nem procurava explicações e encontrava-se agora numa fase de balanço: fornicara, provocara inveja passeando ao lado de uma mulher que fazia parar o trânsito, passara serões a ver tricotar e a dar opiniões sobre cortinados, trocara ideias de forma exuberante com uma interlocutora brilhante, avalizara livranças solidariamente, enfim, experimentara um pouco de tudo o que havia para experimentar junto de uma mulher e quase que estava convencido que exagerara no seu racionalismo e que devia ter seguido o modelo do comum dos mortais em escolher um pouco ao acaso e atrás das circunstâncias, mais ou menos transvestidas de oportunidades. Mas, constatava, no fundo agora perdera a hipótese de viver com a maior das nostalgias, aquela nostalgia que já ascendeu ao pódio dos grandes sentimentos que alimentam as almas: não possuia aquela coisa da 'mulher perdida', aquela mulher com a qual, fruto das vicissitudes da vida, não tinha juntado os trapinhos. Pegou no caderninho dos critérios e escreveu: «o sucesso alcança-se com a existência duma ilusão possivel-impossivel. O terceiro excluído. A reserva intocada. A frustração é a madrinha de guerra da acção». Entretanto, o pai de Samuel enviuvara e descobrira o caderninho do filho. Apesar de conhecedor de todas as peripécias pensou que ainda tinha tempo para experimentar. Se calhar o problema não seria do critério mas antes do criterioso.

8 comentários:

Anónimo disse...

Estava à espera de um happy end ... helas!

Na minha gramatocologia supersticiosa, desejo a Samuel muito boa sorte! Nao vale a pena traduzir pois nao!?

aj disse...

com happy end eram mais 20 euros

Anónimo disse...

Não tenho. E se acaso os tivesse, não pagaria. Sabe porquê? Os happy ends não se pagam nunca. Acontecem. Ou não. E se não acontecem el cuerpo que los aguente!!!!!!!!!!!!!

io disse...

Ainda há uma derradeira hipótese para o Samuel (e também para o pai do Samuel) que tenho visto ser experimentada com um sucesso de décadas e décadas, num comemorar de bodas e tudo, de fazer inveja a esses atoleimados do por amor, para o sexo, por interesse e pelos demais quejandos. Uma coisita parecida com o Montepio, mas sem correr riscos sistémicos: associação de socorros mútuos

aj disse...

olha que é bem verdade...e ainda tinha a hipotese de ser com caderneta ou sem caderneta

io disse...

ahahahah (eu hoje aqui, para variar, só gargalho!)

evanise disse...

Conheço bem este Samuel! ;)

abraços

Evanise

aj disse...

queres ver que emigrou!? :)

beijos