quando se for o pão cuidemos do circo

Por muito que nos possa custar, os políticos desempenham um papel ecológico, depurador (redentor já era exagero) na sociedade. Certos piquenos delitos comuns ao serem incorporados na sua (deles) actividade corrente acabam por se diluir e perder força, acabando por ser assimilados pela sociedade sob a forma de caquinha normal, fertilizando o bem comum.


O dicionário não ilustrado, neste período pré eleitoral, e sempre sempre sempre, mas sempre, em período de reflexão, não se pronuncia sobre as mais valias de cavaco nem sobre as menos valias de alegre ( julga mesmo que o melhor seria arranjarmos um cavaco alegre ) e apresenta a síntese definitiva da ética política nas entradas 1347 a 1351.

prometer o que não vai cumprir - pela sua natureza, tudo o que se relaciona com o futuro anexa actos de grande coragem. A 'promessa' enquadra-se nesta categoria. Assim, prometer aquilo que já se sabe que se vai cumprir é um desrespeito pela instituição 'promessa'; a verdadeira promessa deve estar associada à incógnita, ao falhanço, é preciso saber destacar bem a 'promessa' da 'previsão'. A promessa tem direito a uma dignidade muito especial e essa dignidade só lhe é conferida por um nível de cumprimento ridiculamente baixo. Quando o cidadão normal promete gera uma mera expectativa, quando o político promete cria todo um universo mitológico para a mentira.

manipular dados - desde Saussure e Lacan que sabemos que a linguagem provocou a 1ª grande falha entre o homem e a realidade. A segunda grande falha foi criada por aquilo que se costuma chamar de «os dados». O politico é o agente predestinado para melhor resolver essa grande quebra, relativizando-em-absoluto (reparem só nesta classe) a algebrização da realidade, tornando os factos reféns da sua, dele, vontade, e libertando-nos dessa grande responsabilidade e maçada que seria ter de aprender com a experiência. O cidadão interpela-se com os dados, o político atropela-nos com eles.

discriminação de clientelas - o acto fisiológico de viver é um acto puramente comercial; tudo trocas: energias, oxigenações, memórias, relações, fermentações; tudo se pode resumir a uma transacção de elementos: um dar, um receber, um pagar, um cobrar. Os políticos elevam à sua maior nobreza um dos fenómenos da troca vital: os favores; o figado faz favores ao estomago, o estômago faz favores ao intestino, os incisivos fazem favores aos molares, a bexiga vai-se aviar ao rim. Até o 'Pai Nosso' se vai aviar ao 'Credo'. O político transforma um metabolismo num património social.

fingir sentimentos - 'sentir' é já de si uma das grandes ilusões que o nosso corpo nos reserva. Está ali entre a fraude e a corrupção; ou seja, a máquina de sentimentos que temos incorporada merece ser devidamente posta no seu sítio e mostrar respeitinho ao ser que a acolheu. O político faz isso por nós: a ternura pelos que mais sofrem, as condolências pelas perdas abruptas, a consternação na hora da catástofre, a elevação da honra nacional, a dedicação ao bem de todos nós, o espírito de sacrifício pela coisa publica. Os políticos fingem por nós, abençoados, é essa a sua maior representatividade.

inventar passados - se o futuro é uma aventura o passado é uma ficção. Quem mais precisa do passado são os políticos e por isso são quem mais honra lhe pode prestar. O valor da fidelidade pode aplicar-se a muitas circunstâncias da vida, mas nunca ao passado. Prestigiar o passado é antes de tudo inventá-lo, truncá-lo, empolá-lo, adorná-lo, fazer dele uma obra de arte e técnica, pondo-o ao nosso serviço. Ora, se a maioria das pessoas precisa apenas do passado para lhe justificar algumas neuras, e uns recibos verdes aos psicoteratretas, os políticos usam-no como relicário para se passear pelas paróquias onde costumam arrear sermão. Se o contribuinte arrasta o passado inventado como uma via sacra, o político pode elevá-lo à condição de mistério do rosário.

2 comentários:

Anónimo disse...

Se «o futuro é uma aventura [e] o passado é uma ficção» e a propósito de "outro" Magalhães, então:

"Voltar ao real, sim. Como o disse / quando outros se refugiavam / na linguagem da linguagem. / Nessa altura / mudaram quase todos de registo. / Mas sempre se esqueceram de que lhe chamei / desencanto."

Magalhães, J. M. (2001). "Arqueiro", in Alta Noite em Alta Fraga. Lisboa: Relógio D'Água.

C. (moi même)

aj disse...

o House 'diz' que «a desilusão é a rebeldia dos fracos»; dos poetas, no caso...