Já tivemos proletários, já tivemos burgueses, já tivemos camponeses, chegámos a ter saloios. Chegou mesmo a existir uma coisa que se convencionou chamar sociedade, que alimentou ciências com estatísticas sobre electrodomésticos e divórcios. Na mente de alguns carolas bem intencionados chegou a afirmar-se a ideia peregrina do individuo, chegámos a ver essências e substâncias nas coisas; choraram-se gerações perdidas, rascas, fodidas e soubemos equilibrar-nos entre degredados filhos de eva e abençoados filhos de deus. Piedosamente elegeram-se líderes, devotamente criou-se o direito e, que nem iluminados, levámos uma candeia a anunciar a libertação pela informação. Chegámos a conseguir resumir tudo a oprimidos e opressores, situação e oposição, a inocentes e a filhos da puta. Todos já tiveram o seu hino, a sua causa, a sua justificação. Todos já tivemos os nossos momentos de semente, de massa e de fermento, quem quisesse já podia ter escolhido uma parábola e uma bem-aventurança para si. Sobra agora uma massa borbulhosa, pegajosa, amarelecida, ciosa da ignorância que conseguiu ir acumulando e engalanada de farinha em flocos. Os que querem ser mais diferentes acabam mais iguais e a bitola volta a ser fornecida pelo jardim de todas as zoologias. Sem saber o que era a morte já a experimentámos em escala, em isolamento, a pedido, súbita, e até já inventámos a morte estúpida. Ora abandonados pelo além, ora abandonados pelo aquém, mas, pelo sim pelo não, entrincheirados na cova do amor e da felicidade, não vá a coisa dar para o torto e sermos apanhados desprevenidos por algum petardo da má sorte. Já tivemos capital, já tivemos trabalho, já tivemos valor, já tivemos escolha. Já fizeram de nós matéria e até ideia. Até há quem nos ensine a viver. Somos o resultado parolo duma divisão em que o numerador vive com o medo de se tornar resto.
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7 comentários:
eheheh (ganda miscelânia)o que me parece é que somos todos uns assustados perante as variadas opções de que dispomos (nós, "os coitadinhos" do hemisfério Norte).
Lua Nova a 2%...
C.
ora 'miscelânea' vem do latim e queria dizer 'alimentação grosseira de gladiadores'. E um gladiador nunca se assusta, nem na lua nova!
Se tivermos de regressar "à toga e à quadriga" (em maré de gladiador nunca se sabe onde isto acaba...) é bem capaz de ser preferível a "andar de tanga" com uma "peninha" (o que um petardo da má sorte pode bem, afinal e se andarmos distraídos, trazer-nos). De resto tudo bem, como diria o outro ;)
Blanche
e no país no pais que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma - ora ai está -
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)
Mário Cesariny, em Manual de Prestidigitação
Bom Ano Novo!
Poemas e o caneco! Isto está uma pintarola! Muchas gracias
Reparei entretanto que me esqueci de assinar um comentário (o #5, com poema do Cesariny). Reposta identificação pª que não lhe sobrem mais dúvidas...
C. (moi même)
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