história universal do amor e da concorrência


cap I. Os primos

Siegfried Schon von Siemenze e Albert Ernest von Geiger eram primos direitos e verdadeiros modelos antropológicos de homem ideal, dignos de qualquer vitrine do mais exigente museu de história natural, e pareciam ter saído fresquinhos directamente do tupperware de espermatozóides da arca de noé para as mãos da parteira. Desde novos apresentavam-se afáveis, fiáveis, com uma rectidão à prova de bala e apresentavam aquela quase irritante humildade que rodeia os que parecem não se dar conta dos seus talentos. Eram filhos de duas irmãs gémeas, Helga e Sofia, também elas mulheres dum gineceu de eleição, e herdeiras daquela fusão junker & liberal que produziu o hemograma alemão, talvez um pouco mais picadas pela arrogância, pois as mulheres estão talhadas para exacerbar, mesmo contendo.

cap II. Cecilia

Estavam SSS e AEG a entrar na idade adulta, rebentando de energia e criatividade pelas costuras, quando algo inesperado, mas clássico, acontece: apaixonam-se pela mesma rapariga. Cecília, uma bávara esguia, dotada daquela atracção representada pelos vértices do triângulo das bermudas romântico onde quase todos os homens partem os queixos antes de se perderem: simplicidade, mistério, ternura. Ambos os primos tinham a noção de que era uma corrida primicída entre os dois, mas num, quase heróico, misto de educação com orgulho, fingiam viver cada um a sua vida, deixando as intrigas para os respectivos inconscientes. A mesma mulher cruzara-se-lhes no caminho por qualquer razão superior, nenhum duvidava disso, mas pressentiam desde o início que a proverbial irracionalidade feminina lhes iria pregar uma partida. Acertavam. Aquele modelo de pureza, mas de carnes enrijecidas nas caminhadas pelos Alpes, e espírito amolecido por um schillerianismo precoce, preparava-se para os deixar apeados, trocando-os por um, também clássico, semi-francês semi-capitão semi-poeta, não mostrando sequer respeito pelas neuras dostoievskianas dos homens rejeitados, que não encontravam culpas nem razões nos intervalos das rimas de Marcel von Boll, o eleito.

cap III. O desgosto

SSS e AEG reconhecendo (com a ajuda das mãezinhas) ter nas mãos uma bomba em forma de desgosto amoroso em lume brando, empenharam-se a inflectir as suas energias para a ciência e os negócios, tendo acabado por inventar a batedeira eléctrica e a enceradora, demonstrando de viés que o sofrimento por amor resulta sempre em beneficio do lar. Puseram a paixão em pousio, o homem por vezes faz isso com uma eficácia luterana, e a acumulação de riquezas e influências várias deram entretenimento àquela zona do cérebro que pede prazeres com pedigree.

cap IV. A esperança

Mas não, os dois primos não esqueceram Cecília, nunca poderiam esquecer aqueles ingredientes básicos do pão-de-ló do flirt: o carinho no olhar, a pele aveludada, a pose enigmática, o carrossel do gosto-não-gosto, enfim, e uma boa electrónica doméstica nunca substitui uma ginástica recreativa na bancada da cozinha. Marcel tinha-lhes roubado indecentemente o sonho, quase sem os deixar desembainhar a língua nem a carteira, e era esse sonho que eles agora queriam - tinham de - recuperar; para isso, num pacto, com raiva e engenho mas sem diabo, aliaram-se tacitamente. Animava-os uma ideia: Cecilia saberia que tinha feito uma escolha precipitada, motivada pela vontade de se mostrar livre, independente; e se o peixe morre pela boca a mulher morre pelo remorso.

cap V. Feitios

Não se pense, pela necessidade de simplificação que a escrita me impõe, que SSS e AEG eram personalidades semelhantes. Siegfried era teimoso, combativo, adverso a ver as duas faces da moeda se apenas uma face já lhe revelasse o suficiente para agir. Albert era mais cerebral, mais falsamente hesitante, mais complacente e menos óbvio. Juntos quase que cobriam o património genético dos temperamentos. Com os dois juntos parecia que a espécie inteira se tinha unido para resgatar Cecilia do calabouço da imprudência amorosa. Enquanto a felicidade no homem se interpreta por sorte, na mulher é vista como ingenuidade.

cap VI. O deslize

Como seria previsível Marcel cometeu um erro. Um homem talhado para receber os dons vindos sabe-se lá donde não consegue gerir os que lhe vão surgindo debaixo dos pés e ficou refém duma baronesa - seria possível não aparecer uma baronesa? - que lhe tinha pago três poemas com uma noite de zarzuela: duas vezes por cima e uma por debaixo dela. Parece demasiado banal, demasiado ordinário, demasiado a pedido, mas não posso fazer nada, foi mesmo assim. Cecilia mantinha a sua pureza intacta, estava ainda bem capaz de fazer boa figura em qualquer romance de cavalaria, mas mesmo confrontada com a situação foi levada, sob o comando de qualquer orgão esponjoso e desconhecido, a perdoar e mandar tudo para trás das costas, depois do devido corridinho de juras devidamente alavancadas, e apenas plafonadas pela elasticidade da coluna de Marcel que chegou ao seu limite de arqueamento. No entanto, a arte e a vida ensinam que a mulher atinge o seu máximo de beleza quando perdoa, e o homem o seu abismo quando se desculpa.

cap VII. Estratégias

Siegfried quando soube do deslize (quando é um homem chama-se deslize) não deu tréguas a Cecilia. A baronesa devia-lhe dinheiro, devia-lhe favores, e SSSiemenze foi direito ao assunto. A paixão quando tem o catalisador da vingança atinge energias que nem a pôr protões a chocar se lá vai. Em pouco tempo Marcel não só estava na mão duma baronesa como nas mãos dum inventor da batedeira eléctrica. Parecia demasiado para um tenente de artilharia com jeito para rimas. Mas, ao contrário do que seria de esperar, AEG não tinha tomado nenhuma iniciativa. Ele pensava - e bem - que as mulheres não se apaixonam por quem as faz confrontar com a verdade, e guardam-se para quem lhes esconde a mentira.

cap VIII. Mulher

Cecilia era uma mulher rija e preparada para sofrer. Nunca fora bafejada por nenhuma fortuna inesperada, nunca esteve sob a influência de nenhuma excêntrica, nem moralista nem libertária, nunca foi deixada nem às sortes da inteligência nem às sortes da beleza.
Quando os primos von Siemenze e AEG a cortejaram, sentira-se bem, nem sequer a perturbara o facto de serem dois, e quando se deixou levar pelos encantos de Marcel e teve o coração encostado às tábuas, soube dar dignidade a uma rejeição dupla que rompia as leis da lógica e entregava os trunfos aos deuses da lírica. A mulher gere a correspondência amorosa como um bordado: sabe que tem dois efeitos a produzir, o desenho do bordado e a sua imagem de bordadeira.

cap IX. Estratégias II

Como já disse, AEG não se precipitou quando soube da ligação de Marcel com a Baronesa. Esperou que o primo avançasse com o seus trunfos e quando sentiu a hesitação de Cecilia, quando sentiu que ela se revoltara também com o clima de chantagem que SSS inevitavelmente criara, apareceu de mansinho. Fez-lhe uma corte cirúrgica, não lhe negou sentimentos evidentes, pôs-lhe delicadamente o menino nas mãos, beijou quando devia beijar, calou-se quando o silêncio parecia uma pedra filosofal, e insinuou-se quando parecia ser a hora da serpente. Digo-vos: esteve quase. E Siegfried von Siemenze, que estava com o atarefado processo de internacionalização da torradeira eléctrica nas mãos, não deu conta de nada. Marcel ia gemendo a sua sina entre o riesling e o cognac.

cap X. Equações

Parece impossível. Cecilia percebeu que estava metida num trapézio amoroso, percebeu que tinha de fugir. Homens nunca lhe faltariam, tornara-se uma mulher irresistível, duma beleza pragmática, daquelas belezas que não chega contemplá-la, é preciso possui-la de alguma forma, nem que seja encostar-se a ela a dar milho aos pombos. Com aquela sensibilidade que não tem explicação, nem se encontra escrita nas carcaças de nenhuma tartaruga, e que algumas mulheres vão buscar a um baú espiritista qualquer, Cecilia deu-se conta que Albert E. von Geiger estava perdido nos negócios e que já só sobreviveria com o apoio de von Siemenze, assim, deixar-se levar pelo encanto da compreensão do primeiro era entregar-se mais tarde a este, era entrar na cadeia de inevitabilidades logísticas que assola sempre o amor quando já não há pernas para mais. Marcel, custava-lhe deixar Marcel, mas no fundo era o único que a enganara ostensivamente; sabia que ele tinha sido traído por aquelas forças ocultas que não podem ver ninguém feliz, os senhores do submundo do sentimentos, mas não podia continuar a dar-lhe o coração. Fugiu.

cap XI. Escandinávia

Apanhou um ferry boat e foi para a Finlândia tirar fotografias a alces. Pouco tempo depois de lá chegar conheceu Fredrik Karl Nokia, um curioso carpinteiro, trabalhador, sério, mas comunicativo e disponível para o resgate do coração de Cecilia, naquela altura armadilhado na dúvida e na desconfiança. Compraram uma casa na floresta e recolheram para lá os dois mais o amor em fase clorofila. De manhã, Nokia saía para cortar lenha e passava muito tempo fora. Sofria por não ver Cecilia, por não conseguir falar com ela, e passava-lhe pela cabeça que von Siemenze ainda andasse de radar em riste à caça de remorsos. Mas o amor é como a necessidade e aguça o engenho. Foi então que Nokia inventou uma forma revolucionária de falar com Cecilia através das ondas. E love is in the air, como já diziam os tipos do barco. Acho que já está tudo dito. Cabrão.

Conto-vos isto porque também eu gostei dela; perdidamente. Conto-vos isto porque aqueles maricas do Siegfried von Siemenze e do AEG nunca reconheceram que fui eu que inventei a máquina de cortar relva, conto-vos isto porque Marcel chegou a implorar-me para fazer a campanha publicitária dos microondas senão não podia comprar um casaco de peles para a Cecilia. O F. Nokia nunca cheguei a conhecer bem, só o vi uma vez a comprar um gps num supermercado em Hamburgo enquanto a Cecilia estava na secção de frescos. Conto-vos isto porque fiquei agarrado às minhas máquinas de barbear para toda a vida, sem o consolo duma pele lisinha, macia, terna, doce, como a da minha Cecilia. Ainda hoje mantenho o meu coração tão limpinho como o cuzinho dum bebé depois de mudar a fralda.

Joachim von Braun

14 comentários:

Anónimo disse...

Peço desculpa Sr Celso de me desviar do seu circuitosb 'post-al'. Permita-me pf a pergunta (que o meu cozinheiro ressona lá em cima ...) saberá dizer-me qual o condimento ideal para ingerir calamares? Tentei açafrão, salsa, coentros, pimientos del piquillo e até maionese! Náaa não funciounou! Sabe?
Ass: A Maria

aj disse...

depende... é para matar ou para engordar?

Anónimo disse...

A Maria responde:
É para matar.
Que conselho receitual-condimentar me daria?

Sabe que passar para além dos 290 Kg seria difícil que o fito fosse 'engordar' ...
Ass. A Maria

aj disse...

depende... é para coisa rápida ou lento?

Anónimo disse...

Bem rápida ... bom! entre 365 dias a 369 ... por aí 'tá ver?

Que me diz, em números e receitas, curto e bem grosso Sr. Celso? É que já ingeri os calamres crus ... e ainda tou viva!
Ass Maria

Anónimo disse...

Congemino com o sexto-sentido que Nosso Senhor me terá dado (ou não) que o seu próximo coment será tão frio quanto distanciado assim:

'Depende. Com ou sem sofrimento?'

Acertei Sr Celso?

Anónimo disse...

- SEM

aj disse...

Quer-se dizer, uma pessoa preocupa-se, interessa-se, inclusivamente esmera-se, em prestar um serviço completo, que vá de encontro às reais necessidades, tenta perceber as situações em concreto, e depois é isto «tão frio quanto distanciado»! ingratidão, só pode!

Anónimo disse...

A Maria responde:

AI! AI! AI! Não me faça chorar pf Sr. Celso!!! Acabei por mudar a ementa para sardinha. E acabei concomitantemente de perceber uma coisa que só o Sr. Celso, que de ingrato nada tem, claro!, me fez aprender (de entre as inúmeras que me tem ensinado nos últimos dias!) é que a melhor maneira de enfardar é não condimentar NADA! e comer tudo cru. cru, cru ! Eu não falei em 'cu' mas em 'cru' cautela interpretativa Sr. Celso!

E não me faça chorar pf Sr. Celso!!! Faça-me gargalhar que gosto mt de si!

Ass. A Maria

aj disse...

Chorar é que não,sodona maria,
já me basta a menina Dulce aqui do Lar que está inconsolável desde que se lhe estragou a escalfeta.

Anónimo disse...

Já limpei o pranto Sr. Celso. Muito Obrigada. Os meus mais sinceros consolos à Menina Dulce pela escalfeta ...

Olhe, veja lá com quem se mete aí no lar! A Menina Dulce, apesar da escalfeta, é de confiança? Cejá lá!

:) O Meu Bem Haja do fundo do coração para o Lar do Sr Celso!

blanche disse...

Tetralogia wagneriana em undécimos de aproximação a versão brechtiana? Falta ali uma valquíria em condições ;)

aj disse...

já não tinha verba para cavalos alados...

Anónimo disse...

Esta Cecília parece, à primeira vista, uma mulher de sorte. Apenas à primeira vista.

C. (moi même)