[1] O realismo é a fantasia mais famosa. Tal como o bom senso é a maior das precipitações. Quem alguma vez sentiu a amargura que é amar alguém sabe que apenas a ilusão dá sentido à vida, tal como apenas depois de se caminhar sobre as águas se sabe o peso que transportamos. Quando se chega ao clássico momento do 'i don't know what to say' é porque realmente percebemos que o importante nunca foi dito.
[2] A realidade é o outro nome para o desencanto. O realismo é a sua máquina de alimentar enganos. A máquina geralmente falha quando quer produzir um engano maior do que o rolamento que lhe fornece a inércia. Um dia, quando quisermos ir lá pôr o óleo da paz repararemos que afinal o motor nunca lá esteve: 'always already gone'. Era tudo inércia.
[3] O realismo funciona como uma misturadora. Mantendo tudo unido faz com que cada elemento perca a sua identidade e produz uma falsa sensação de unidade. No entanto, apenas o realismo pode juntar duas sensações que o destino tinha prudentemente colocado nos antípodas: 'seduced and abandoned'. O maior mérito de abordar a realidade pelo seu flanco ambíguo é que ficaremos treinados para o boca-a-boca com o vírus da dúvida.
[4] O realismo é um veículo onde a marcha a trás é a primeira mudança. Quem nele for convidado a embarcar pensará que o solavanco é o movimento normal. Mas depois, quando for pedir contas ao homem do asfalto, queixando-se do piso, ele responderá: 'You must be out of your mind'. Nessa altura perceberemos que quem escolheu as mudanças automáticas esteve certo desde o princípio e nós estivemos apenas fora de nós.
[5] Afinal o realismo não é o veículo, mas sim a própria estrada. A pior das conclusões; tanta coisa para isto: 'Walk a lonely road'. Nem sequer é voltar à casa da partida, nem sequer nos apresentou o precipício, nem sequer nos fez esbarrar numa parede, nem sequer nos fez despistar na berma. Apenas uma estrada abandonada.
[6] Eis a grande equação da nossa selva: quem é o parasita de quem, entre o conformismo e o realismo. Quem chupa o sangue de quem. Geralmente o conformismo anda de barriga cheia mas é o realismo que aparece nas revistas. E já se viu muito conformismo ter de levar cargas de realismo às costas. Mas o conformismo genuíno nunca se cansa.
[7] A maior virtude do realismo é conseguir decorar a desistência. Mas toda a desistência disfarça uma má escolha. O realismo descobre então a sua verdadeira vocação como purgador de falhanços. A máquina sem motor vira válvula. O realismo revela-se então como um buraco onde todos nos podemos esconder dando a imagem de que estamos apenas à espera.
[8] O realismo vive de fastio. E o que mais o enfastia é a própria realidade. Para a digerir melhor aquece-a num banho morno de simulações ou contingências. Para um lado parece que está a piscar o olho mas para o outro parece que pestaneja. O realismo pretende ser o tal caçador dos dois coelhos mas que ainda usa o mesmo e único cajado para mexer o guisado
[9] O realismo começou por ser apenas uma das mais nobres inspirações das doutrinas de apaziguamento, depois passou a ser uma das modalidades moralmente aceites para as mais finas hipocrisias e, depois de ter feito de madrinha em várias guerras frias, retirou-se para umas termas vazias. Hoje massaja fígados com amor-de-bílis e ajuda a calafetar excessos de confiança.
13 comentários:
desfazedor de rebanhos e de feeds. humpf. com a vida que tenho levado, é meio caminho andado para eu me esquecer de vir cá.
humm...o q é isso de «desfazedor de feeds»?
É que o teu blog não permite ser adicionado ao google reader. se não é de propósito, então proponho que se altere essa oh-tão-grande injustiça: basta ir ao painel blogger-> definições->feeds e aí dar permissão aos mesmos. também podes optar por permitir que a pessoa receba os posts inteiros no google reader ou apenas um resumo, ou seja, aparece só o início do post e para lê-lo na totalidade temos de entrar no blog.
Eu uso o google reader para ser informada das actualizações, mas nunca as leio lá, a não ser que o template seja de fugir e fira a minha extrema sensibilidade.
Obrigada e tutti-frutti.
A coisa teria começado melhor com: o realismo é a fantasia mais perigosa. Infelizmente a única possível.
Já está devida e superlativamente feedado.
Gracias eu, e ginger ale.
quanto ao «melhor»... dizem de facto que 'o óptimo é inimigo do bom', mas este blog é fã do óptimo!
não me deixa na mesma... não percebo porquê. :|
bem...eu fiz tudinho como mandava o blogger, mas se calhar ele não me acha de confeedança.
Há tempos não andava pelos blogs. Que boa surpresa voltar aqui e achar esse texto. "O realismo pretende ser o tal caçador dos dois coelhos mas que ainda usa o mesmo e único cajado para mexer o guisado" - e é engraçado imaginar também que o coelho que sai da cartola do realismo é o mágico com orelhas peludas e compridas e falsas.
O realismo é o senso comum na arte e ainda há quem acredite que seja possível representar o "real".
Lilian, seja bem reaparecida!
Acabei de te encontrar no meu GReader por acaso. Estás como «title unknown», embora isso não explique o mistério. Seja como for, já cá cantas, é o que interessa.
Já se ia escrevendo aqui mais qualquer coisita, não? Realismo, pois claro.
C.
"you justify my love" com este Realismo seu.
beijos sub tropicais
Evanise
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