«nunca voltarei, toda a Rússia que preciso está dentro de mim» (*)

Mesmo para qualquer pessoa crente e que pareça lidar com o absoluto como quem come batata frita existe uma enorme necessidade (e importância) de hierarquizar os ditos 'valores fundamentais da fé'. Desde o contacto mais básico com a doutrina (sem uma doutrina a fé não passa dum pneu à deriva no oceano: serve para flutuar mas não sabemos para onde nos leva) que se deduz facilmente que entre as palhinhas ou a vaquinha do presépio e a coroação de espinhos ou uma descida do espírito santo em línguas de fogo, não pesa tudo o mesmo na balança da fé. Ou seja, o cristão, o católico, desde que se conhece como tal que teve de se habituar a balançar, a sopesar os seus valores: ele é o 'atire a primeira pedra', ele é o 'filho pródigo', ele é o 'dar a outra face', ele é o 'dar a césar o que é de césar', são infindáveis as situações que demonstram a necessidade que tem o crente em Deus de estar constantemente a dar jeitinhos no fiel da balança para manter a coisa equilibrada sem dar muita bandeira ao fiscal. Felizmente, e sintomaticamente, nenhum dos evangelistas apresentou a doutrina revelada numa espécie de ranking moral que nos obrigasse ideologicamente a uma ordenação de deveres ou valores (tirando o primordial - mas não absolutamente evidente - 'amar a Deus acima de todas coisas'), e ficou inaugurada assim a prática revolucionária do 'endosso moral', ou seja, uma variante apostólica do clássico: chacun se desenmerde. Por isso, apesar das comichões que possa causar, será sempre uma inescapável verdade de fé o facto de Deus estar dentro de nós e falar connosco. Daí o ritual quase de conotações espiritistas que emprenha toda a alma cristã: falar com Deus. Será que todo o Deus que precisamos estará dentro de nós? Todo o crente tem um apelo para construir o seu panteísmo a la carte.

(*) frase de V. Nabokov, em entrevista

4 comentários:

evanise disse...

Seria a doutrina o manual do usuário da fé?
Parece-me que equacionamos estas questões de uma maneira quase confortável, porque se "deus está dentro de cada homem e mulher" o hedonismo é apenas uma forma de tornar a residência divina mais conforável, alegre, enfim... O ponto que ocorreu-me, e desculpe-me se não me atenho à discussão ética, é que quando a nossa civilização estiver para as gerações futuras, lá pelo ano 7.234 d.C, como os gregos estão para nós, será ensinado nas aulas de História (supondo-se que até lá não sejamos onicientes, como espécie) que a humanidade reunia-se em imensos templos de gosto duvidoso, e cultuava divindades as mais diversas, inclusive variando por genero e faixa etária; cujos nomes eram estampados nas paredes ou em luminosos e sacos do material mais biodesagradável - o plástico. Famílias inteiras passavam horas nestes lugares e faziam libações e o alcool era usado para induzir a estados alterados de consciencia que podiam resultar em sacrifícios individuais ou coletivos, no transito. Imensas quantias eram imoladas visando não ofender as divindades do grande templo do consumismo...Será assim?

???

E.

aj disse...

1. sim, a doutrina poderá ser um manual de usuário, sim, ou, para sermos mais modernos, um gps d'alma, um SPS: soul position sistem...

2. boa a imagem-binómio hedonismo/imanência! :)

3. ah...e qto ao futuro...é quase tão dificil de prever como o passado

(qdo eramos miúdos os desenhos do ano 2000 eram todos com carros voadores, e vai-se a ver... nada! :)

evanise disse...

sim sim, passado e futuro tendem a ser esquivos mas e se...(insito, ando ficando atrevida!!)os carrinhos voadores dos desenhos fossem metáforas destes computadores aqui, pelo qual viajamos na velocidade da luz?rsrs

;)
E

aj disse...

bem, cada um metaforiza com o que tem mais à mão, de facto, mas podemos sempre considerar, ao invés, o famoso 'eterno retorno' e quem sabe voltaremos todos à toga e à quadriga?