feelings behind the kisses

Filipe Gusmão era um beijador. Não daqueles beijadores exibicionistas que sacam um beijo como um autógrafo, não, Filipe começou apenas a beijar por amor. Eram beijos desprendidos de qualquer intuito ou capricho da curiosidade e apenas regidos pelas leis do desejo e da ternura, puros escravos do sentimento. No entanto, com o decorrer do tempo, Filipe começou a detectar que ao beijar conseguia descobrir o que se passava no coração da mulher beijada. Dir-se-ia que tinha um dom, uma inexplicável capacidade de absorver na sua mente o banquete informativo que as papilas lhe preparavam. Ficou naquele estado entre o entusiasmo nervoso e a perplexidade preocupada, tão típico das descobertas da psicosomatização, mas concluiu que afinal estava ali um filão para explorar.
Depois de ter perdido todas as namoradas ao lhes descobrir os sentimentos mais íntimos (muitos deles não abonatórios para a sua estimada imagem pessoal) decidiu que teria de alargar o observatório (linguatório ou labiatório, no caso) a um universo de miúdas (restringiu-se a miúdas depois de ter apanhado um estivador de Leixões que queria saber porque sofreria de rejeição crónica com crises de hemorroidal associado) com as quais não fosse necessário desenvolver nenhum relacionamento de índole emocional, denominando a especialidade de ginelabiologia (no seu cartão podia ler-se ' nem precisa de descruzar as pernas', numa alusão competitiva ao acto simbólico do seu concorrente ginecológico). Abriu consultório junto de um amigo que fazia hipnose para resolver problemas de aftas e começou a beijar profissionalmente como se fosse, digamos, um centro de diagnóstico psicoterapêutico.
Será importante dizer que o Prof. Gusmão (como gostava de ser tratado) tinha granjeado uma fama muito significativa quando descobrira que a sua última namorada (uma famosa artista beijadora de telenovela) estava afinal apaixonada por um astronauta que lhe tinha prometido um colar com pedrinhas azuis do mar da tranquilidade, e isso apenas porque ela esticava um bocadinho o pescoço nas noites de lua cheia fazendo simultaneamente movimentos caleidoscópicos com os olhinhos; ou seja, para Filipe Gusmão beijar era um acto técnico que envolvia muito mais do que apenas aquele pequeno mundo que circunvalava dentro do céu da boca - que para ele era um verdadeiro poço da morte onde se jogavam todas as forças da existência.
Rapidamente foi criando uma clientela ávida e fiel, sustentada numa capacidade de diagnóstico que se mostrava infalível e que conseguia descortinar desde inseguranças amorosas a úlceras de estômago passando por traições violentas. Filipe Gusmão conseguia, como nunca ninguém se tinha mostrado capaz, fazer uma leitura perfeita da forma de todos os elementos do beijo se articularem entre si, nunca deixando nenhum pormenor ao acaso, fosse ele o local de abordagem do primeiro contacto labial fosse ele a forma repentina ou arrastada de terminar o movimento técnico. Texturas, formas de arqueamento muscular, respiração de acompanhamento, tudo fornecia informação imprescindível, como num verdadeiro manual de mecânica .
Claro que Filipe era muito escrupuloso nos seus diagnósticos e não foram raras as vezes em que as suas clientes se incomodaram, nem raras foram as vezes que os homens que as acompanhavam torceram o nariz aos seus métodos que, convenhamos, heterodoxizavam com a prática comum, mas o prof. Gusmão estava completamente imbuído pela força do seu dom (que com o tempo se foi tornando mesmo num inesgotável manancial de saber), e era absolutamente imune às hesitações, ou mesmo irritações, da clientela. Beijava com convicção e cobrava forte.
Não será de estranhar que Filipe Gusmão nunca mais tenha conseguido manter um relacionamento emocional decente com ninguém, tendo mesmo chegado a tentar um namoro sem beijos, o que em pouco tempo foi, naturalmente, interpretado como uma perversão sexual negativa por parte da sua parceira; mas «será que aos ginecologistas também lhes está vedado o desfrute do belo do apalpão ?» perguntava desalentado Filipe ao seu colega e vizinho hipnotizador de aftas. Mas Filipe tinha um dom que o perseguia, era mais que uma mera competência técnica: o céu da boca era a sua bola de cristal, a língua o seu estetoscópio, o lábio o seu raio-X, e a sua mãozinha a agarrar o cabelo pela nuca da moças parecia um autêntico divã.
Contudo, certo dia, Filipe, rico e famoso, acabou por se afastar. Bochechou com tantum verde até à exaustão e até ao anestesiamento da boca e convidou uma miúda de lábios grossos para jantar. Deixou-se então levar pelos seus beijos saboreando uma total ausência de sensações parapsicológicas, parecia um beijador normal, capaz de manter uma cara estúpida mas feliz, capaz de viver a insegurança de não saber o que estava por detrás daquele beijo. Tinha descoberto o prazer da ignorância, o único condimento verdadeiramente obrigatório para qualquer emoção decente e duradoira.

6 comentários:

Anónimo disse...

Ora, pobre rapaz! Ao menos foi capaz de tentar outras modalidades de efeito garantido, tipo suporífero ou diurético?

C.

aj disse...

o beijo suporífero ou diurético é claramente um upgrade! Está quase ao nivel do principe encantado (mas ao contrário...)

evanise disse...

Bem Bonito!
;)

Quanto a outras modalidades,
não exatamente ao contrário, muitas vezes o principe encantado mostra-se "uma dor de barriga".

e

aj disse...

mas convenhamos q um beijador q faça dormir e acelere os rins não tem de facto perfil para principe encantado! eheh

Anónimo disse...

aj, explique-me, sff, a razão de tanta assertividade acerca do que [se] entende por «príncipe encantada»...

C.

aj disse...

1/3 recalcamento
1/3 tara
1/3 obsessão