Naquele que é o nono, e último, episódio desta saga, se bem que com prejuízo sério para o desfrute da audiência, pois praticamente todas e cada uma das falsificações seriam dignas duma moldura, sinto que não posso desertar sem esmiuçar três aspectos, sem os quais nunca se entenderá nem a vocação nem o desígnio dum verdadeiro falsificador.
Será que tive sempre sucesso nas minhas falsificações? Não, apesar de um falsificador com nome a defender não se poder dar ao luxo de falhar muitas vezes. Reconheço que uma vez falhei. Pensei a dado momento da minha carreira lograr apresentar ao mundo um conjunto inédito de letras de canções da Elis Regina, canções que ela teria guardado para quando um novo amor incompreendido irrompesse definitiva e gloriosamente pela sua vida. Escrevi as canções, nove, dei-lhes um toque popular, mas digno e sentido, cuidei da métrica, da rima, da simbologia, e posso dizer que cumpriam bem mais que os mínimos para um negócio decente. Mas ninguém lhes pegou. Todos acabavam por me dizer que não podiam tocar naquilo, pegar num amor não correspondido, e que nunca tivesse sido cantado, podia dar azar, podia atraí-lo quase como uma maldição. Fui assim vencido por uma imprevista, generalizada, irracional superstição; e se calhar fiquei guardião dessa maldição, desse desterro, mas guardei uma lição: nunca ficar com uma nega na mão.
Outra das características fundamentais, estruturante e singular, da minha vocação de falsificador, é que jamais me poderia especializar numa só arte, numa só técnica, ou num só ofício, como se lhe queira chamar. Tratou-se isto não apenas uma questão de bom senso (evitar a rotina, o pequeno tique que nos desmascara, as probabilidades de começar a ser reconhecido num meio mais fechado), e de majoração do valor da minha discrição, mas era também a maneira que possuía para me distanciar do mero copista; se bem que nada tenha contra tão digna, e subvalorizada, arte. Repare-se que eu nunca copiei simplesmente nenhuma obra (nem o Mondrian com que me iniciei, nem um Pollock que pintei depois duma barrigada de fettuccine), nunca falsifiquei por encomenda, apenas vampirei a fama (um bem escasso e traiçoeiro) de outros, deixando os meus recursos concentrados no essencial da criação; neste processo, o uso do meu fraco nome apenas faria deslocar o cifrão mais para a esquerda do número.
E, finalmente, por certo outro dos fenómenos que não passará despercebido, é que, a partir de certa altura, tornou-se tão importante para mim a qualidade da obra, e do autor falsificado, como a invenção da história que envolvia a justificação da posse e da plausibilidade do suposto original (reparem que para o enredo se fala de invenção e para a obra se fala de falsificação). A falsificação é afinal a única forma de permitir a suspensão da vida sem a perder. É, pois, normal que o falsificador se apaixone também pela forma de legitimação histórica da sua, soit disant, fraude, soit disant transfiguração. Pena até que fique por contar o caso em que me fiz passar por uma freira holandesa para explicar a posse duma mera árvore tombada e dum tronco partido pintados por von Ruisdael. A falsificação só se consuma verdadeiramente com uma imolação graciosamente tricotada do enganado às mãos ficcionais do falsificador, no fundo, de alguém que está sempre a reescrever o clássico: ‘La Falsification, mode d’emploi’.
Será que tive sempre sucesso nas minhas falsificações? Não, apesar de um falsificador com nome a defender não se poder dar ao luxo de falhar muitas vezes. Reconheço que uma vez falhei. Pensei a dado momento da minha carreira lograr apresentar ao mundo um conjunto inédito de letras de canções da Elis Regina, canções que ela teria guardado para quando um novo amor incompreendido irrompesse definitiva e gloriosamente pela sua vida. Escrevi as canções, nove, dei-lhes um toque popular, mas digno e sentido, cuidei da métrica, da rima, da simbologia, e posso dizer que cumpriam bem mais que os mínimos para um negócio decente. Mas ninguém lhes pegou. Todos acabavam por me dizer que não podiam tocar naquilo, pegar num amor não correspondido, e que nunca tivesse sido cantado, podia dar azar, podia atraí-lo quase como uma maldição. Fui assim vencido por uma imprevista, generalizada, irracional superstição; e se calhar fiquei guardião dessa maldição, desse desterro, mas guardei uma lição: nunca ficar com uma nega na mão.
Outra das características fundamentais, estruturante e singular, da minha vocação de falsificador, é que jamais me poderia especializar numa só arte, numa só técnica, ou num só ofício, como se lhe queira chamar. Tratou-se isto não apenas uma questão de bom senso (evitar a rotina, o pequeno tique que nos desmascara, as probabilidades de começar a ser reconhecido num meio mais fechado), e de majoração do valor da minha discrição, mas era também a maneira que possuía para me distanciar do mero copista; se bem que nada tenha contra tão digna, e subvalorizada, arte. Repare-se que eu nunca copiei simplesmente nenhuma obra (nem o Mondrian com que me iniciei, nem um Pollock que pintei depois duma barrigada de fettuccine), nunca falsifiquei por encomenda, apenas vampirei a fama (um bem escasso e traiçoeiro) de outros, deixando os meus recursos concentrados no essencial da criação; neste processo, o uso do meu fraco nome apenas faria deslocar o cifrão mais para a esquerda do número.
E, finalmente, por certo outro dos fenómenos que não passará despercebido, é que, a partir de certa altura, tornou-se tão importante para mim a qualidade da obra, e do autor falsificado, como a invenção da história que envolvia a justificação da posse e da plausibilidade do suposto original (reparem que para o enredo se fala de invenção e para a obra se fala de falsificação). A falsificação é afinal a única forma de permitir a suspensão da vida sem a perder. É, pois, normal que o falsificador se apaixone também pela forma de legitimação histórica da sua, soit disant, fraude, soit disant transfiguração. Pena até que fique por contar o caso em que me fiz passar por uma freira holandesa para explicar a posse duma mera árvore tombada e dum tronco partido pintados por von Ruisdael. A falsificação só se consuma verdadeiramente com uma imolação graciosamente tricotada do enganado às mãos ficcionais do falsificador, no fundo, de alguém que está sempre a reescrever o clássico: ‘La Falsification, mode d’emploi’.
4 comentários:
Aquela senhora dos tarótes, a maya, hoje disse na tv que o 9 é um número muito especial, cheio de magia e simbolismo...
C.
essa sra aparenta ter uma inflamação nas tarótidas
hoje ao comer laranjas lembrei-me desta série de posts
a laranja tinha um aspecto delicioso, cheirava deliciosamente e eu disse para comigo próprio: "o trabalho que esta laranja se deu para se falsificar se agora, quando eu a comer verificar que não presta"
felizmente era deliciosa
não sei se não se deu ao trabalho da falsificação ou se teve muito trabalho na falsificação
assina: o nadador timshel
olha o Swimshel! temi q te tivesses perdido no meio das piscinas!
pois qto à laranja julgo q só no final dos tempos saberás de q tipo de falsificação era feita. Para já foi-te docinha, o q já não é mau!
(já leste o 'the enormous radio', tb do Cheever?...; lê)
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