Selecção on the rocks

Carlos Giveganho passou por ser um apanhador de bivalves algarvio que viveu há mais de duzentos anos na zona de Cabanas de Tavira, e que dedicou a sua vida entre a taxinomização de conchas e o aperfeiçoamento da técnica do mexilhão em vinagrete

Não fora os apontamentos que escreveu num caderno comprado numa papelaria da Manta Rota, e ainda hoje seria impossível ter acesso à sua revolucionária teoria da Selecção da Rocha pelo Mexilhão.

Aproveitando quase todas as marés vazias durante dois anos, Giveganho percorreu a costa algarvia no seu bote ‘Tabémabelha’ mais de quatrocentas vezes, estudando a forma como o mexilhão ia aperfeiçoando a maneira de se agarrar e ir fazendo dieta junto à rocha, sem se deixar lixar pela força ignóbil da ondulação, e dando a entender aos veraneantes que seria mais vantajoso irem comprar conquilhas na lota de Tavira.

Aparentemente condenado à mera decoração de pratos de salada de gambas, ou ao preenchimento de meias doses aldrabadas de arroz de marisco, Carlos Giveganho descobriu que o mexilhão teve de conquistar o seu lugar na hierarquia das espécies que ilustram metaforicamente o quão fodidos podemos estar, fosse à base de alguma fealdade exterior, ou mesmo duma inequívoca emissão de mensagens de enfartamento e azia. A este processo, meticulosamente anotado no seu caderninho, denominou de ‘movimento perpétuo’, designação que posteriormente foi utilizada por diversos artistas, inclusivé por Carlos Paredes quando começou a ficar com uns calos nas mãos parecidos com amêijoas.

Foi então no dia dos namorados de 1809, quando punha a sua sensível e experimentada mão por debaixo do saiote de Luisa Maria, sob o pretexto de retirar dois búzios que se preparavam para lhe arranhar a vértebra número treze, que reparou na existência duma curiosa rocha que não vira a maré cheia desde o tempo dos dinossauros, pois exalava um cheiro a mijo só comparável ao duma esquadra da polícia de Portimão onde já tinha passado uma noite por causa dumas redes de pesca demasiado apertadas.

Tendo observado cuidadosamnete todas os exemplares de mexilhão que habitavam essa preservada rocha, pode assim recuar no tempo e concluir que o mexilhão, sem estar sob a ameaça da caprichosa força das marés, desenvolvia um sabor intenso entre o salmão fumado e o tamboril assado em folha de alumínio, e fora até conhecido nos tempos neanderthálicos como a trufa da gruta, como posteriormente provaram dois fósseis de colón inchado de São Brás de Alportel.

Graças à sua minuciosa organização documental e a uma paciência escolástica que tinha herdado do seu avô materno que era sacristão em Monchique, Carlos Giveganho desenvolveu a sua teoria revolucionária em que explicaria a razão da coeva exaltação do lavagante e do percebe, entre outros petiscos, na gastronomia moderna. Ora o mexilhão, que se tinha preparado para viver em recônditos lugares apenas destinados a recolher e filtrar os sofisticados alívios de bexiga de outras espécies, viu-se, com a subida das águas, confrontado com o inóspito mar aberto, e teve de se concentrar nas suas técnicas de defesa e sobrevivência na rocha, e o melhor que conseguiu foi arredar desse habitat de eleição para os aguarelistas, as estrelinhas e os cavalinhos do mar, - que se viram destinados para os coloridos baldes de plástico - mas acabou no entanto por pagar um elevado preço ao vir a precisar de muito condimento para se poder aguentar numa receita, mesmo na concorrência apenas da simples amêijoa ou do lingueirão. O mar muito batido fortalecera-lhe as qualidades de resistência e camuflagem da concha, mas relegara o sabor e delicadeza do seu resguardado coração para um segundo plano.

Descoberto o caderninho de Giveganho foi dado um enorme salto na compreensão da evolução das espécies em geral, designadamente daquelas que, bem preparadas para viver na aconchegada merdalenga, se apanharam inesperadamente em liberdade; e agarrados à rocha.

2 comentários:

vermelho disse...

O que é certo é que o mar continua a bater forte e feio na rocha...
Abraço.

aj disse...

lá está, é o movimento perpétuo!
abrço