«Os heróis culturais da nossa civilização liberal burguesa são anti-liberais e anti-burgueses; são (...) repetitivos, obsessivos, e indelicados, que impressionam (...) - pelo agudo extremismo tanto pessoal como intelectual.

Os fanáticos, os histéricos, os destruidores do eu – são estes (...) que testemunham o terrível mundo polido em que vivemos. (...) Há certas épocas que são demasiado complexas, demasiado ensurdecidas por experiências históricas e sociais contraditórias, para poderem ouvir a voz do bom-senso. O bom senso torna-se então compromisso, evasão, mentira.

(...)
As verdades que respeitamos são as que nascem do sofrimento. Cada uma das nossas verdades deve ter um mártir. (...) Kierkegaard, Nietzsche, Dostoievski, Kafka, Baudelaire, Rimbaud (..) têm autoridade sobre nós devido ao ar doentio que apresentam. É o seu caracter doentio que lhes dá solidez, é o que os torna convincentes.

Talvez certas épocas não precisem de verdade tanto como precisam de sentido de realidade, um alargamento da imaginação. Pelo meu lado, não duvido de que a visão sadia do mundo é a verdadeira. (...) [mas] A necessidade de verdade não é constante; tal como não o é a necessidade de repouso. (...) O mistério é precisamente o que é negado pela segura posse da verdade, uma verdade objectiva. Neste sentido toda a verdade é superficial; e algumas ( mas não todas) distorções da verdade, algumas (mas não todas) loucuras, algumas ( mas não todas) negações da vida, são fontes de verdade, produzem sanidade mental, criam saúde, e tornam melhor a vida»


Uma leitura e transcrição fraudulentada de Susan Sontag, em 1963, num ensaio sobre Simone Weil incluído em ‘Contra a Interpretação’.




«Я вас любил безмолвно, безнадежно,
То робостью, то ревностью томим;
Я вас любил так искренно, так нежно,
Как дай вам бог любимой быть другим.»




Feira de Egos - Cabaz de Natal


‘Quanto mais estreitos são os limites da minha vida, mais exagero acerca de mim mesmo’
Don DeLillo


Aqui os egos estão todos no mesmo cesto; mas não são egos moles.


Noutro dia fui princesa russa. Comecei por ter um preferido. Alguém a quem pudesse dar o braço e, de imediato, me seguissem os olhares da cobiça alheia. Depois decorei poesia épica, com floreados e trinados nas rimas, que garantisse alguns suspiros e um número relevante e estável de erecções na plateia. De seguida dei liberdade a três servos e mandei chicotear outros tantos por causa da água do banho me saber a xisto e fazer borbulhagem na dobra do joelho. Ensinei as damas de companhia a escolher perfumes e a bordar frisos da basílica de minsk, enquanto a mais aprimorada fazia o aquecimento ao pendular do dito preferido, por forma a já me chegar com capacidade de levantar uma bilha com dois alqueires de cevada. Reservava as minhas canseiras para o arrastar da saia, o abrir das pernas e a contemplação iconográfica. Prometi valsas que não cumpri, mas fui fiel às mazurcas, deus me permita igual cumprimento nos arfares e nos genuflectires. Nunca fui amante do desperdício e, por isso, garanti uma corte de damas que se afeiçoaram e gratificaram com as minhas migalhas, compostas por um sortido de tenentes, cocheiros e dois gladiadores de ursos polares. Fui inspiração de três romances de cavalaria e dei origem a um punhado de duelos, que resultaram em duas fissuras do esterno e quatro rótulas rachadas. Os meus clímaxes deram-se com a capadela dum poeta lírico e o dedo mindinho dum místico de vladivostock. Faltou-me o colo dum turco e o espernear dum cossaco, mas o céu está garantido com duas tuberculosas que tive por conta num romance do Saltikov-Shtchedrine


Noutro dia fui cartoonista. Eu tinha tanta tanta piada que a piada me saia pelos poros; ora, como não tinha tapa poros à mão, precisava de extravasar essa tanta tanta piada, mas como as únicas vazas que me saiam eram à base de senas e ternos de paus, comecei mesmo a dedicar-me ao cartoon, que (1), não tendo verba para o canelado, acabei por escolher o filosófico-humoristico, pois que (2), na falta de pasquim sério e pagador em efectivo, sempre me daria para engatar mulheres de forte pendor intelectual, que (3), são as, que (4), já se sabe, mais rentabilizam eroticamente a tanta, mas que (5) tanta, piada grafico-sintética, que (6), eu possuo. Optei pela corrente do cartoonismo kantiano, que (7), é aquele em que (7A), o cartoon existe para além da realidade que (8- pára aos 10, calma) lhe subsiste. Nesta corrente cartoonística, qualquer tira é uma verdadeira sublimação da realidade e chama-se mesmo a técnica do tiracolo, ou seja, tem mais propensão à piada de esticão, mas não evita tendinites e curvamentos espandilosicos de coluna, promovendo inclusive os deslocamentos de bacia. Infelizmente, o meu filho não me faz perguntas de origem metafísica, e antes me descreve alegremente comportamentos peri-escatológicos, que (9 – está quase) envolvem a sua relação como o outro género - leia-se sexo – o que (extra contagem) me retira muito manancial, mas, por outro lado, me distrai, para além de abrir novos horizontes pedagógicos, mesmo sem a preciosa ajuda do pedro rolo duarte – agora em nova versão coachada . Prometo, pois, que (10), quando souber desenhar arrotos em cartoon, todo o existencialismo fenomenológico será revolucionado à base da minha tanta, que (11, afinal fui aos), posso mesmo adiantar é tantíssima, piada.


Noutro dia fui pintor surrealista. A minha ideia principal era conseguir ser exposto num museu ao lado dum quadro do morandi, mas sem as pessoas a dizerem: «é pá quem é este gajo que bebeu o que estava dentro das garrafas daquele». No fundo, um pintor surrealista é o tal tipo que consegue passar por bêbedo patusco sem ter bebido sequer um copito, nem mesmo ter sido enrabado a sangue frio por um estivador nigeriano. Ao principio, confesso, ainda pensei na pop art, mas achei colorido em excesso, a não ser se fosse para pôr o durão barroso numa garrafa de óleo fula., só que os direitos de imagem do barroso estavam muito inflacionados pela disputa cerrada entre o aquário vasco da gama e a lota de Sesimbra. Assentei então em surrealista para descanso da minha mãe, que chegou a temer que eu fosse desenhar conas à fontana, se bem que ela não dizia conas. Nos primeiros tempos centrei-me em pilas circuncidadas e arroz manteiga não pastoso. Foi uma série interessante, principalmente porque a ejaculação era apresentada como um arrozinho doce em que a canela desenhava a silhueta daquela zona da jenifer lopes em que o criador se esmerou, especialmente depois de ter feito as orbitulinas, e cheguei a ter encomendas da agencia abreu para as promoções de verão em punta cana, que, obviamente, rejeitei a favor da 1ª bienal de alhos vedros que se realizava de três em três anos, pelo menos, inclusive. Ensaiei ainda uma breve incursão no cinema, com um filme em produção luso-francesa, com uma história em que um pente encarnado fazia deambulações psicanalíticas, e com o elucidativo título : 'o pente et l'âme'. Depois de ter feito a minha suite de lagostas afrodisíacas e lavagantes com cio, e um tríptico com a franja do almerindo marques, acabei como favorito dum marchand que me comprava dois quadros por ano a troco de convencer a mulher a não usar chanatas azuis claras em casa. Por três até lhe pintava as unhas.


Noutro dia tive um blogue. Basicamente aconteceu porque já tinha a virilha em chaga de tanto coçar e os tremoços estavam ressequidos. Ao fim de quatro horas tive duas ideias que me vieram seguidas, mas depois faltou-me uma palavra sem ser fodasse para as ligar e tive de citar o camus, aproveitando ter a enciclopédia aberta na letra c, à conta duma busca a cabo espichel, que trocava sempre com ponta delgada. Acabei por me afeiçoar e, já pela noitinha, escrevi uma máxima da minha especialidade, que é procurar não ter especialidade nenhuma, se não acabo em canalizador que é o destino de todos os especialistas, informo-vos já, podia dar-se o caso de não saberem. Ora a economia, ciência que cumpre este desiderato na perfeição, serviu para demonstrar até à saciedade (anotai já uma incongruência) que o desejo na natureza humana é ilimitado, mas que o Homem ( o tal ser que se masturba nessa dita natureza) dá cada vez menos valor marginal a cada unidade adicional dum qualquer bem que vá desejando e venha – pela graciosidade generosa de deus – possuindo. Quer isto dizer que fui comprar tremoços.


Noutro dia fiz uma reforma educativa. Nessa madrugada tinha sido invadido por um decibélico batuque oriundo duma tribu zulu que tentava impermeabilizar um terraço fronteiro. O entusiasmo levou-me a sair rápido de casa, e não fossem os vizinhos basquetebolistas franceses do 4º estarem a fazer uma distribuição de croissants pelas mochilas das crias, ocupando os dois elevadores em simultâneo por causa da falta de ar, teria chegado à rua cinco minutos mais cedo, ou seja, antes de um belo rapaz de sotaque brasileiro, e respectivo ar de parvo em anexo, ter deixado o seu carrinho a entalar o meu porque tinha ido tomar um cáfêzinho com a garôta do cabeleireiro, e no pantanal eram desconhecidos os lugares para estacionamento. Tudo se teria superado não fora um casal de panascas me ter aparecido aos beijos no semáforo, que decidiu afeiçoar-se ao encarnado naquele momento preciso, e me fez citar levi strauss a uma criança de tenra idade que exigia explicações antropológicas urgentes no banco de trás. Tudo bem. Tudo bem, não fosse a puta da professora do citado imberbe indivíduo lhe ter rasurado uma rima nos trabalhos de casa – por mim criteriosamente inspirada. Foda-se, questionarem-me porque é que o puto traz ramelas nos olhos há duas semanas seguidas, ainda vá que não vá, agora rasurarem-me uma rima, bem esgalhada por sinal, pedagógica inclusive, designadamente musical, coisa que a ela nunca lhe teria passado, nem próximo, pelo entrefolho neuronal, é que é o mesmo que me mandarem para o caralho; que «não era preciso rimar» terá afirmado de rabo a abanar e em surdina a dita fufa fina. Comecei, eu começo sempre, por perguntar-lhe apenas se não encararia o afastamento por reforma como uma opção saudável para a sua pessoa, fosse por invalidez, ou senilidade, desassédio sexual, ou menopausa com herpes labial, não fazia questão, dado que para enganar um homem rico já lhe via poucas condições e atributos face ao seu queixo papudo, sorriso de antena parabólica e mamas em cortinado. E uma inteligência tão descaída quanto as nádegas, tive ainda o cuidado de precisar, porque um diagnóstico quer-se completo. Ficou naturalmente sentida; em poucos dias, o supracitado imberbe e inquilino do banco de trás do carro tinha ao seu dispor uma nova professora - milho, boa como o - saída directamente duma capa de revista. Iniciou-se um novo capítulo na presença, interesse e participação dos pais, na assessoria aos trabalhos de casa, com especial incidência em trabalhos manuais, e nas fichas de português jamais uma rima foi efectuada sem a garantia duma métrica que não fosse ao encontro das expectativas líricas da nova docente. Já estou escalado para um concurso de manjericos inter turmas. Ponham gajas boas a dar aulas, pela vossa rica saúde, e verão o que é uma paternidade responsável e dedicada. E as mães até se podem emancipar de bónus, ou tirar fotografias da apanha do berbigão e mandar para o abrupto.


Noutro dia mandei calar um Bourbon. Não era que ele cheirasse mal da boca, mas estava a aborrecer-me com aquele barulho a chupar as pernas da lagosta. Ora eu não aprecio reis que façam barulho a comer pernas de lagosta, um presidente ou outro a deitar farelo de bolo rei pelo canto de boca ainda vai que não vai, mas reis a fazerem feschiiiu a puxar uma coxinha de lagosta, não aprecio, é uma questão de princípio, fschiiiu é feio, ainda para mais vindo dum bourbon, mandei-o calar, ou então que fosse comer uns croquetes para o pavilhão de caça. Vendo bem ainda fazia chenzefluck, ou mesmo renhinkch como já ouvi à atrasado a um dos grandes de espanha com uma empada de galinha. Se isto é uma dinastia, vou ali e já venho, já me parecem os habsburgos com o esparguete à bolonheza e o seu clássico fellliupt, que é já para não falar no que a rainha vitória um dia disse quando trincou a língua num rosbife - 'cabrões dos lencastres'. Agora até me lembrei duma do onassis para a mulher, quando esta parecia uma perua a reclamar que a cozinha estava toda desarrumada enquanto chupava um perna de pau de morango a fazer trinados de ficchhluippó: «ó maria, porque não te callas!». Um dia destes o Chavez dá um pum e então é que eu quero ver.


Noutro dia fui ministro das obras públicas. Um homem que se preze não pode ficar apenas pelas obras privadas. Segurar o varão dos cortinados enquanto alguém tira as medidas às bainhas, verificar o puxo do exaustor, o escoamento dos ralos, ou calafetar frestas é algo que a partir de certa altura nos deixará ansiosos por mais, por algo que nos ponha pelo menos na história, se não for possível no bronze, seja uma estrada, uma ponte, uma passadeira para peões, um aeroporto sobre estacas, umas pegadas de polvo, ou mesmo um semáforo intermitente se não houver verba para mais. Descerrar, pois, uma lápide atestando a nossa presença na inauguração de algo que fique para as gerações que hão-de vir, é algo que nos fará vir é a nós também. E tudo devemos fazer para ter uma glória ejaculativa saudável e duradoira. Reparemos, inclusive, que as obras de índole privada, mesmo que tenham implícito algum fluxo, não nos proporcionam esse simbólico atestado lapidar; bizarro seria uma lápide no autoclismo dizendo que ele tinha deixado de pingar na data tal, assim como não seria próprio o urologista tatuar-nos por cima da pila dizendo que teria sido ele a pôr-nos a uretra que nem o repuxo do lago de genève. E homem que não tenha o seu nome gravado a ferro numa chapa de latão, bem pode chegar ao juízo final com o atestado de vacinas em dia, e uma lista de desfloramentos, todos dentro dos mais sagrados sacramentos, que o s.pedro, ex-pescador levemente ciumento, sempre perguntará: «e tu, meu filho, em cimento, o que deixaste por lá?».


Noutro dia fui detective. Sabia-me um predestinado para tudo descobrir e ninguém me conseguia ocultar para sempre fosse o que fosse. O mais pequeno indício, o mais ligeiro deslize, o mais ínfimo sinal eram suficientes para que eu pudesse deslindar o mais obscuro e estranho facto até ao seu microscópico pormenor. Movia-me tão facilmente na mais monótona banalidade como no mais surreal ou aleatório slalom de acontecimentos. Não cheguei a precisar de me especializar em nenhuma área específica tal a abrangência das minhas faculdades, e, por isso, a meio duma espionagem industrial podia perfeitamente, e dum só rasgo, resolver casos de catatuas desaparecidas ou infiltrações de ice tea em pacotes de pipocas. Heranças mudadas à ultima hora, plágios wikipédicos ou mesmo pragas de lagartas em padiolas de maçã raineta eram casos que pouco mais me duravam que uma semana a resolver , sendo mesmo conhecido pelo tal, que, fosse do lombo ou fosse do acém, fazia depressa e bem. A certa altura comecei a escolher apenas os casos mais bicudos, autênticos cones que outros não alcançavam por prisma nenhum. Já não trabalhava pelo dinheiro mas sim pelo prazer da descoberta, e com um pêlo de gato pardo cheguei a encontrar um intelectual abichanado, para não falar dum espermatozoide às riscas que me levou a uma solução revolucionária no caso do palhaço violador. Reformei-me por invalidez quando a minha mulher fugiu com o dono da perfumaria.


Noutro dia descobri um poço de petróleo. Confesso que andava apenas a brincar à globalização energética com uma brasileira especialista na posição de toupeira, quando um belo dia ela começou a esgravatar melhor e, no intervalo de duas gargantas mais profundas num desfiladeiro de Curibunda, quando pensava eu que lhe estava a provocar uma lubrificação olímpica com algum corrimento de bónus, verifico que afinal se tratava dum banho de hidrocarbonetos; a minha primeira reacção foi chamá-la de grande porca, mas ela prontamente me respondeu que doravante seria uma puta parafina. Ora eu disse-lhe que aquele oiro negro também me pertencia porque, se ela se pôs decididamente de bruços, a mim também o devia. Mas rapidamente acertámos as partilhas da refinação, ela, futura beata e peregrina, mulher afinal asseada, ficava com a benzina e eu, a Deus temente, mas homem ardente, e de erecção perene, ficava com o querosene. A vaselina, como era um subproduto, ficava à discrição, para quem mais viesse a precisar. Porque isto do negócio da perfuração deve agradar a todos, com ou sem reservas especulativas.


Noutro dia fui mafioso. Sempre persegui o secreto desejo de um dia cortar os dedos a alguém, ou por me dever dinheiro ou por ter beijado ao de leve a minha filha. O acto de extorquir, em si, não me causava especial fascínio, dominar pelo simples medo também não me satisfazia minimamente, para isso ia para fiscal da asae, precisava de sentir na minha vítima o pânico vertiginoso da morte, da mutilação, da minha presença, no fundo. Confirmei que o único verdadeiro poder é o físico, qualquer ditadorzeco psicológico se borra perante a perspectiva dum estrangulamento, duma amputação de membros, duma sodomização com broca 23. Não se tratava pois de fazer justiça com as minhas mãos, tratava-se especificamente de exercer um poder cirúrgico mas indiscriminado com elas, e ter quem me tratasse das unhas depois se não quisesse que eu lhe vazasse as vistas. Ter alguém completamente em suspenso da nossa arbitrariedade, fosse ela uma invalidez permanente, fosse ela uma desonra temporária, fosse ela passar a ferro com o cuzinho em brasa, era uma sensação que nada no mundo podia pagar. Corromper era uma brincadeira para os tempos livres, sem ver sangue e uns testículos a voar sentir-me-ia apenas um politico.


Noutro dia fui bombeiro. Como sou alérgico ao fumo especializei-me em resgates, arrombamentos e evacuações. Demovi suicidas em altos parapeitos à base de sudokus, fiz reconsiderar raptores com uma boa jeropiga, com um grupo de sequestradores acabámos todos a comer umas conquilhas no eduardinho, e cheguei a assar dois cabritos num cofre-forte. Sinto-me vocacionado para o diálogo e sei que chego rapidamente ao âmago do ser humano. A minha agulheta é o meu olhar sincero e penetrante, o meu capacete é a minha compreensão sem limites e o olhar carinhoso, a minha picareta é o meu amor ao próximo em globalmente e o amor ao patrão em designadamente. Já trabalhei com montanhas em erupção, com velhas em falta de ar, e com rios em transvaze, mas o que mais apreciei foram as falhas sísmicas. Deus permitiu que numa racha tectónica eu viesse a encontrar o destino para o grande aluimento da minha vida. Se morrer de amor soterrado, para a posteridade quero ficar apenas como um géiser porreiro.


Noutro dia fui juiz. Como já havia muitos especializados em factos, dediquei-me com particular cuidado a julgar intenções. Constando que o inferno estaria bem recheado das boas, tratei de desenvolver técnicas para descortinar as más, e assim poder equilibrar as coisas para aquilo nunca poder correr o risco de arrefecer muito. Fascinava-me a fronteira entre a negligência e o dolo, tirar as medidas ao descuido e à deliberação, pesar o fortuito e o planeado como se fossem matéria de ourives. De nada me interessavam os actos em si, mera pasmaceira, de nada me interessavam os danos e os proveitos, a causa própria e a causa alheia, o meu reino era o da subjectividade em estado puro, sem as impurezas do acontecimento; sabia-me o deus da intencionalidade, o que trabalhava para lá do bem e do mal , o que via mexer em primeira mão os cordelinhos da vontade, o que desflorava malmequeres ( e treinadores dos lagartos) que nem inocente canalha, o que definia quem era cão e quem era pavlov, o que definia o que era inconsciente e o que era farinheira com míscaros. Fui odiado pelo positivismo e adorado pelo idealismo, fui perseguido pelo pau carunchoso e idolatrado pelo óleo de linhaça, apareci nos sonhos de assassinos, nas visões dos místicos e no ranço do queijo da ilha, cheguei à culpa antes do crime e cheguei à glória antes da virtude; dormi debaixo da relva de alvalade. Um dia era instrumento de ditadores e no outro seu carrasco, e o criador foi levado a confidenciar-me que chegou a pensar na semana de oito dias por minha causa. Nenhuma intenção me passou a perna e a todas cataloguei minuciosamente. Para mim, todos os alibis de consciência estavam colados com cuspo, e com um simples sopro fazia esvoaçar os mais bem construídos cenários de boa intencionalidade. Dormi com as cúmplices das almas boas e fiz patuscadas com mioleira de arrependidos. Nunca me enganei, tirando no dia que em saltei da barriga da minha mãe.


Noutro dia fui profeta. Escolhi uma terra de cépticos encartados e com moléstias de fígado. Especializei-me em indicadores económicos, amores impossíveis, velocidades de sedimentação e transaminases. Como fui incompreendido pela plebe desde o início, isso granjeou-me um grupo de adeptos culturalmente liofilizados, fieis e indefectíveis, daqueles que vão sempre atrás dos que não dizem nada que se perceba. Criei um léxico próprio, descobri personagens sórdidas e perdidas no pó dos tempos para me servirem de referências e acarinhei os inimigos como se fossem sangue do meu sangue. Associaram-me à manipulação de almas e ao mau olhado, mas eu apenas dizia o que o grande espírito da razão e o alambique me transmitiam. Previ fortunas desfeitas em bisca lambida, poços de petróleo a darem café descafeinado e amores desfeitos por erros ortográficos e má pontuação. Pus governantes a sentirem-se napoleão, mulheres a dançarem como mata-hari, e velhas a mandar piropos ao brad pitt; demonstrei que o mundo é um sininho pendurada na mão dum capitão gancho: pendular e assustada. A quem queria ser fausto eu tratava de lhe encontrar um mefistófeles à maneira, e às rosinas que se quisessem libertar eu providenciava um dom bártolo atento e possessivo. Provei que tudo o que tem explicação é falso, e que um bom argumento não passa duma profecia estragada. Chegou a pensar-se que tinha razão antes de tempo, mas verificou-se que, afinal, era o tempo que esperava que eu falasse primeiro.


Noutro dia fui gaja. Comecei por ter alguma dificuldade em habituar-me àquela necessidade de estar sempre a falar e a relacionar o irrelacionável, mas acabei por me ir adaptando com treinos de respiração e complexos vitamínicos. Uma das coisas que facilita claramente a sobrevivência do feminino é o masculino ser pré concebido como opressor mas tratado como um banana - e depois tanto faz ser fatiado ou à dentada. Destaco aqui para já que gostei essencialmente dos saltos altos; pode parecer estranho, mas aquele ar trôpego, que ao homem o transformaria em bêbedo passado três segundos, à mulher carrega-a de tanto glamour e intercourse-appeal, que lhe permite desenvolver qualquer teoria com um auditório a babar-se. Essa experiência de uma plateia completamente focada em nós é também algo apenas ao alcance das mulheres. É que, mesmo estando o foco invariavelmente localizado ora numa zona ligeiramente abaixo do queixo ora ligeiramente acima dos joelhos, sempre é diferente que estarem a ver se temos os pêlos a saírem das orelhas ou do nariz. A tradicional incapacidade de abstrair, aliada à compulsão para generalizar, acabaram por ser algo com que até me dei bastante bem. Um descanso, mesmo; veja-se um chão sujo, por exemplo, passou a ser simultaneamente ou o simples e definitivo diagnóstico dum cenário pré apopalíptico, ou a prova científica de que quem nos rodeia é um grandíssimo porco e que sem nós viveria numa dantesca estrumeira. Numa penada, como mulher, resolvi por atacado os problemas práticos e os problemas teóricos, como sendo um só, sem inferências ou especiais deduções, prescindido – por ser irrelevante, claro - de outra realidade que não fosse a que estivesse mesmo à minha frente, até porque nem tinha tempo, pois, coitadinha de mim, ainda tinha de controlar a temperatura do forno, subir uma baínha, pintar as unhas, e secar o rabo aos meninos, se não ainda ganhavam pústulas.


Noutro dia escrevi um ensaio sobre os clássicos russos. O editor deu-me carta branca e pus um dos Karamanzov a jogar poker com o príncipe Muiskine. Quem ganhasse podia escolher entre matar uma velha à base de anis com cogumelos venenosos ou engravidar uma condessa adolescente de gémeos. Muiskine mostrou-se tímido no primeiro round, tinha uma mão duvidosa, o que lhe exigiria um nível de risco ao qual ele ainda não estava habituado, enquanto isso, o brother Karamanzov tremia - a raiva a roçar o medo - ao tentar sacar um às de copas que estava entalado na cirúrgica zona onde as hormonas se realizam profissionalmente. Viviam entre a vertigem da batota e o desespero da derrota, fora o catarro, e só se libertavam chamando deus ao diabo, pondo a alma em vinha de alhos, ou regando arenque com malaguetas em vinagrete. Pô-los a rapar frio numa noite petersburguiana foi a minha primeira estratégia, mas rapidamente se apaixonaram pela primeira menina tísica que lhes apareceu, e que ainda para mais andava fugida dum mujique bêbedo que a queria violar para remissão da sua vida dissoluta entre mulheres capazes de capar um tigre da Sibéria. Quando Stavroguine chegou todo confiante já o caldinho estava entornado, as parelhas bem definidas, os encornados bem distribuídos e escolhidas as portadores das doenças venéreas e os tricotadores de moral. Nada ficará igual nesta arte de escrever como quem vomita, neste teste de crimes sem derramamento de culpas, temo que só me venham a compreender quando vos acabarem as trouffes e o cognac. O sofrimento comigo será sempre patrocinado pelos caldos knorr, mas todo o eterno devedor precisará sempre do sr. Fiodor.


Noutro dia fiz uma psicoterapia. Levava no cesto um desgosto de amor, um sonho com a ana bola a fazer tricot de cócoras, e uma somatização bilicosa ao nível da vesícula. A minha vida não tem foda por onde se pegue e os meus sonhos parecem o fantasporto em ano de falta de verbas, por isso só arranjei vaga com psicanalistas em estágio e de formação prévia em charcutaria fina que aguentam estar a encher chouriços durante uma tarde inteira. Ao fim da primeira hora saquei-lhe dois bocejos e uma coçadela de tomates, mas a meio da 2ª o tipo já me chamava o roskolnikov da zambujeira do mar. Eu sou assim: de principio dou ares de amestrador de bolas de sabão mas rapidamente se apercebem que sou um autêntico zeppelin dos inconscientes paranóicos. Ao lhe contar o fascínio – com subtilezas carnais - que exercia sobre a minha vizinha de baixo, a cara do tipo começou a parecer-se com uma romã com bicho, e só parou de morder a língua quando cheguei ao sono em que ela me fazia esperas na sala da conduta do lixo. É um cubículo muito apertado, registe-se, e pouco mais dá que para dois garrafões do luso, mas houve sonhos em que chegou a caber lá dentro um carro de bombeiros, com sirene, mangueira, agulheta e tudo. Ele até desenvolveu a teoria, específica para o meu caso, do alargamento psicótico do espaço onírico e, não fora ter entrado a recepcionista com dois oníricos bem robustos, até me tinha levado a uma sessão de hipnose pélvica. Terminámos com uma tese de projecção que me convenceu: toda a pulsão é uma inflamação de pulso que nunca chegou a ser tendinite. Acho que, gajos como eu, já nem nos livros. Se me pagarem bem, quanto muito, apareço-vos nos sonhos a fazer de édipo marinheiro.


Noutro dia fui cadáver. Deu gosto vê-los a turvar-se-lhes a vista pela minha memória. Um ou outro soluço estrogénico também me soube bem. Foi pena as larvas já me estarem a tomar o gosto e o cheiro pútrido não ser a melhor companhia, mas pelo menos a azia tinha passado. A puta da úlcera parara de me chatear, o irs pouco latejava, mas instalou-se um incomodativo torcicolo, cheira-me que também devia ter deixado definido no testamento quais eram as medidas certas do caixão, os sacanas dos meus filhos puseram-se a poupar na madeira. Enterneceu-me a coroa de flores como forma de gratidão do sr costa da farmácia, e aquelas duas vizinhas quando se debruçaram para manifestar o seu pesar, pois acabaram por dar mais coisas ao manifesto, o que quase me fez cantar um pequeno te deum solene, não fora parecer, liturgicamente, mal. O telejornal deu a notícia com alguma discrição - sempre tentei ser pessoa do mais firme conteúdo e não de frívola aparência - mas com um razoável destaque, e escolheram as imagens em que eu era agraciado com a ordem industrial de mérito, mas porra que agora a medalha até vai servir de palito a estes cabrõezitos que me estão a subir pela coxa acima, ora na cartilagem da rótula não se interessaram eles, se calhar sabia-lhes a lula e estavam à espera de eisbein na púcara. É pena deixar a minha obra incompleta, principalmente o autoclismo da casa de banho do corredor que pinga desde a primeira comunhão da minha mais velha. Também me dói a alma - apesar de ainda nem saber por onde ela anda - em ter deixado algumas rimas incompletas da colecção de poemas sobre os búzios da Ericeira, principalmente uma em que conquilha ficou a emparelhar com virilha o que não parecia próprio para uma colecção sobre simbologia bíblica nas edições paulistas. É triste ter deixado isto assim à pressa, só não tenho saudades do anderson polga, embora as costas agora já não me doerem tanto, e cheira a refogado lá para os lados da bacia.


Noutro dia fiz bacalhau com natas. Gostava que ficasse registado que não foi comprado já demolhado, e por mim foi desfiado, nem podia ser doutra forma, estou para a cozinha como o criador está para a estátua da liberdade, ou seja, que se foda desde que não me faça comichão no nariz. O bacalhau é um bom prato para se cozinhar basicamente porque podemos, e devemos, sempre dizer que está um pouco salgado, e estar salgado é algo que acontece a qualquer um, desde que tenha sido exposto, ou imposto, ao sal, seja ele, ou mesmo não, lágrimas de Portugal, eu às vezes cito, e outras recito, versos porque sempre me consola e distrai, e quem é distraído tem sempre, ou quase sempre, designadamente, desculpa, fora aliviar os gases pela via erudita, mas o que não tem desculpa é que as natas estavam um bocado, um bocado é favor, líquidas de mais, lembravam aquela coisa que se vê nalguns filmes, Jesus, que coisa mais porca, do que me haveria eu de lembrar, é no que dá ainda ter de o demolhar. Vou para dentro.


Noutro dia fiz uma revolução. Tinha comprado uma t shirt nova, e como os bilhares estavam mudar a flanela falei com um primo meu que é descalcificador de máquinas da míele e andava a deixar crescer o bigode e fomos depor o governo. Era inaceitável que o crescimento não ficasse acima dos 2,2%, quando achávamos que o mínimo dos mínimos eram os 5,0 % da superbock preta, mas a gota de água que fez transbordar o copo foi o déficit ter ficado acima dos 2,7% quando o meu primo já tinha apostado umas gambas com um colega paquistanês em como ficávamos pouco acima da jansen sem álcool. A situação estava insustentável e ainda para mais a carlsberg tinha ficado outra vez sem comparticipação, ou seja: ostensivamente descriminada em relação ao colo do útero. Chegaram a falar-me de que eu devia optar pela via reformista, mas eu já tinha comprado a via verde e achei coisas a mais para pôr no para brisas. Acabou por ser fácil porque apostámos no efeito surpresa. Terem-nos confundido com dois vendedores do circulo de leitores também ajudou. O mundo já foi dos atrevidos, agora é dos que passam despercebidos.


Noutro dia fui líder parlamentar. Era um grupo coeso, pois, pese embora a convergência de opiniões ser igual ao olhar do medeiros ferreira, descontavam todos na mesma folha da segurança social e apontavam para a reforma que nem uma mira telescópica. Mas o que realmente sempre me atraiu nesta função foram o pagamento das ajudas de custo por transferência bancária e o perfume daquela moça pequenina que trabalha por detrás do louçã, para além do ar poeticamente superior da dupla maria-alegre-manuel-de-belém, uma espécie de fusão entre a isabel queirós do vale e o martinho da arcada. Foi então com algum sacrifício pessoal que me dirigi a uma plateia influenciada pelos restos da hedionda campanha mediática que me movem há muito anos, não poupando nem família, nem alfaiate, nem periquito, nem o sr pinto engraxador. É bastante duro, creiam, para uma pessoa que pouco mais vê à sua frente que os mais altos interesses da nação, vista ela saia ou vestido, ser ligado aos meros caprichos da vaidade pessoal, coisa que, diga-se, nunca me condicionou, nem ao meu corte de cabelo que apenas ondeia ao sabor da inocente maré, cada vez mais vazia por sinal. Foi assim um combate desigual, e apenas a minha convicção de ter a verdade e a esperança do meu lado me deu energia para continuar, qual d.quixote sem verbas para pagar uma sandes de salpicão que fosse ao sancho pança. Acredito que a eternidade me fará justiça, e aguardo-a; de preferência que traga saldo no cartão.


Noutro dia escrevi um conto para crianças. Já me tinham dito que eu era de efabulação precoce, mas isso acaba por ser um pau de dois bicos, salvo seja, com a imaginação a deixar-nos sempre a meio caminho entre a realidade e o sonho. É uma espécie do nem foder nem sair de cima do psiquismo. Existe uma certa tendência para pôr na boca dos animais aquilo que as pessoas não são capazes de dizer. No fundo, os animais das fábulas têm para a verdade o mesmo papel que os trovadores românticos têm para o amor: cantam aquilo que os outros gostavam de sentir mas têm vergonha de dizer. É triste precisarmos dum porco para falar da amizade ou dum sapo para falar do orgulho, mas antes isso que precisar dum gajo bêbedo de voz suja para dizer a alguém que a amamos e sentimos a sua falta. Por isso as fábulas nunca falam de amor: já é suficientemente mau ver um gato engravatado ou uma vaca de pantufas, quanto mais um gnu a cantar i love you. A nossa civilização será conhecida pela que pôs outra vez os animais a falarem, mas calou Deus. E pôs o amor indeciso entre o notário e a carne. Felizmente o meu herói é um hipopótamo capado, chamado Lacerda, e que, quando se chateia, manda, testosteronicamente, tudo à tal parte.


Noutro dia fundei uma fundação. Ainda pensei em fazer antes uma fundição para treinar primeiro, mas como estraguei logo o vidrado refractário do forno a assar uma fateixa acabei por ir directo ao assunto. Isto deve-se basicamente ao meu feitio filantropo, gosto de ajudar e de me sentir próximo dos que mais precisam, sejam eles a minha família ou os meus negócios ou o meu cão. Doei generosamente a minha colecção de guelras embalsamadas – uma de safio até se parece com o tutankamon, que o deus sol o tenha em descanso – e vai-se criar a colecção-museu da conserva em Peniche, assim sempre será mais fácil encontrar um conservador por essa zona. Encomendei para a ocasião à Paula Rego uma cena de faina com petingas em pastel, e com uns tons amarelados, porque consegui o patrocínio do beira-mar, e o manuel alegre fez uns versos em que garoupa rimava com cação, mas em sopa. Eu sabia que estava destinado para praticar o bem, mas não suspeitava que fosse tão bom. Que Deus me conserve.


Noutro dia fiz uma lei. Não que fosse preciso, mas eu sentia uma certa falta. Sem fazer uma lei um homem corre o risco de não ser levado a sério. O costume é coisa de mulheres. Agora as coisas estão muito mais estáveis, todos sabem o que eu penso sobre o mundo em geral e o que deve acompanhar o bife em particular. Pensei nas excepções, nos atenuantes, devo concordar que sim, pensei, pois no fundo nem em todos os dias me apetece bife, e a via láctea em geral e quem me rodeia e lhe incumbe fazer-me feliz em particular têm de saber do que eu gosto quando não gosto de bife, designadamente, do que aprecio, que é um termo mais técnico. Preocupei-me inclusive com o famoso ónus da prova; a coisa ficou simplificada com a declaração de que, ao correr algo de não conforme, a culpa nunca será minha, porque, lá está, se não houver nada de jeito em casa para acompanhar o bife quem terá de ir à rua comprar não serei eu, dado que eu já produzi matéria legislativa antecipadamente, e ainda tenho de provar o molho. Toda a lei é, pois, um descanso, um catalizador de bom ambiente, desde a cobrança de impostos no império romano até ao quem coça as costas de quem, quer se esteja na polinésia francesa ou no mindelo, ou na bobadela, ou dele. Definir quem manda não é o verdadeiro problema, o real desafio está em ensinar a obedecer. E sem ser tudo ao molho.


Noutro dia comi três pretas. Confesso que a que me soube melhor foi a última, mas tive de me debruçar um pouco mais do que estava à espera. Às vezes sinto que quando estou para comer uma preta se perde algo de iniciativa técnica em detrimento do aspecto lúdico dum ataque envolvente. Mas deve ser só impressão minha, pois geralmente sabe-me bem, principalmente quando o tabuleiro não está escorregadio, por causa da estratégia de saltos de cavalo que costumo utilizar. Desta vez tive para começar com uma abertura siciliana mas receei ser mal interpretado e assim se perder alguma exuberância selvagem do peão junto à torre. Infelizmente fui desafiado para uma simultânea com professoras de álgebra da costa do marfim e não deu para fazer a folha àquela rainha, que estava mesmo a pedi-las, pois passou o tempo todo encostadinha ao pé ao bispo. Estou tão cansado que amanhã se calhar começo primeiro com as brancas, e num tabuleiro alto, talvez assim nem tenha de me dobrar tanto em cima das peças.


Noutro dia assinei um tratado. Pareceu-me bem escrito, as moradas e os nºs de contribuinte todos em ordem, só o sarkozy é que tinha o código postal errado, mas o amado disse-me que não havia azar porque ele estava em mudanças – pelas olheiras suspeitava-se que já dormia no sofá vinha para dois meses. O texto foi-me aconselhado pelo barroso, resultava muito bem nas 324 línguas, incluindo o guincho dos javalis da transilvânia, o inglês técnico e o braile para curdos mudos, chegando mesmo a rimar em morse. Usei uma sheaffer triumph de 1945 com aparo de 14 kilates, da cor da gravata do portas, que falhou, claro, e que arranhava um bocadinho na ponta, por isso um dos jotas’s até me saiu ligeiramente descaído, entre o g do gordon e as mamas duma ministra. Chegaram a pensar no antónio para ilustrar – a ver se as pessoas depois percebiam - mas o zapatero teve medo de aparecer com um preservativo no nariz e optou-se por um friso discreto inspirado no colar da merkel que também queria deixar a sua marca. No final pediram-me para rubricar as páginas entre folhas, só que isso já achei de mais, ainda ficava com fama de rúbrico. Penso que a europa ficou bem servida, nunca mais vai ter de se vergar sob o jugo americano mas, dizia-se nos corredores, deve fortalecer melhor a zona dos gémeos.


Noutro dia escrevi um livro. Esteve para ser autobiográfico mas a certa altura lembrei-me dum furúnculo que me impediu de ganhar um concurso de poesia e optei antes por um romance histórico passado no tempo em que éramos espanhóis apesar de ainda não se terem inventado os filipinos. Pensei num trama sexual mas como não conseguia descrever uma foda em condições virei-me para a inveja, a traição e o ciúme, mas já cheguei atrasado ao comboio da autocomiseração . Do que mais gostei foi de descobrir palavras novas no dicionário; ainda me sobejaram fulvescência e latípede, mas à ultima hora lá desenrasquei uma boa situação para enfiar protraível - tudo na maior das decências, claro, que fodas nem sei relatar. O final saiu-me escorreito, sem dramas nem desilusões, apenas um quê daquela subtileza própria do bom gosto, não sei se estão a ver, como quando a cartuxa de parma abraçava o fabrício e lhe tirava os pontos negros das costas. Mas fiquei com uma certa pena de não estar à vontade com a lírica das fodas, sim, principalmente aquelas cenas de gatas, o mais próximo que fiquei foi quando o torquemada foi jogar ao sete e meio com o richelieu e, no final, o anel lhe beijou.


Noutro dia fiz uma opa. Ainda estive inclinado para a fusão mas como já tinha digitado o código não dava para voltar atrás se não ainda me comiam o cartão. A empresa estava em bom estado, tinha sido pintada no verão, não sei se com tintas marilina se com barbot, e como ainda não lhe tinham dado a 2ª demão achei que era importante a minha opinião. Mas quero deixar claro que o que me move é resgatar o papel de portugal no mundo, isso e a minha próstata, malvada que nem mijo em condições. Sei que tenho fama de castigador, mas sou apenas melhor que os outros. Nem se trata tanto de não me compreenderem, apenas não me alcançam, pura, sincera e simplesmente. Finalmente aquela empresa terá um líder; que mija fininho mas caga que nem batelão da terra nova. Abençoados os que me seguirem porque deles farei a minha mais valia. Perdoem-me a rima, mas livrem-se de me enfiarem o dedo pelo rabo acima.


Noutro dia subi o everest. Estava frio, tenho de vos confidenciar, não fora aquelas meias velhas do marks & spencer e ainda encarquilhava todo. Joguei dominó com um sharpa chamado flinstone, e comi sardinha ramirez em conserva. A sacana da lata das anchovas veio a rebolar do k7 até ao k4 e ia desfazendo a carola do chefe da expedição russa patrocinada pelo vic vaporuc. Quando lá cheguei acima quis respirar fundo, mas já não tinha tempo porque a avalanche estava marcada para as quatro. Tirei uma fotografia do pôr do sol, mas sem sol ( quem tinha ficado com os direitos eram os ingleses que nunca o tinham visto), e ainda apanhei uma sacana duma gaivota de perfil que só não me cagou em cima por um triz. Mas posso fazer um balanço: foi bom, regressei com o nariz, pila e dedo mindinho intactos, perdi foi aquele porta chaves que me tinha dado a minha mãe, com um olho azul da capadócia, espero que esteja alguém em casa para me abrir a porta quando voltar se não ainda durmo na rua.