Chegam à zona dos pastéis de Belém, viram à direita, sobem um bocadinho, e é logo ali numa esplanada em relvado panorâmico com vista para o Tejo, e frequentada designadamente por tipos com idade de profetas e que derretem de forma pacata o orçamento da segurança social que tanto nos custa a esfolar aos imigrantes ucranianos.


Tentava eu consolar um adepto do Belém – que escreve sobre assuntos semi esotéricos num blog de reminiscências surrealistas - e ao mesmo tempo felicitá-lo pela forma digna e pundonorada como abrilhantaram a vitória dos lagartos na taça, quando sou presenteado por mail com esta pérola (parte até publicada no seu blog miniformalista de expatriado saxofonista, aguarelista da teoria dos jogos e poeta da economia industrial), assumindo, das vísceras, uma revolta da qual só me lembro de lhe ver semelhante quando eu lhe dava fortes cabazadas aos matrecos no Jardim Cinema e a resolver integrais duplos de cabeça.


«Vi agora o resumo do jogo no YouTube. O Belém teve sobejas e soberanas oportunidades de golo. Mas enfim, o futebol é isto; a bola é redonda, e uma carreira de sacrifício, entrega e humildade, com muito trabalho ao longo da época, é reduzida a nada por um pequeno pormenor. Não houve justiça no resultado e há circunstâncias que não vou referir agora que altamente influenciaram esta situação.
Por outro lado, embora não tenha informações detalhadas, não me restam dúvidas de que o árbitro foi comprado, aliás isto virá tudo ao de cima quando for apurada a questão do apito dourado, aliás, apito verde-e-branco. É tudo o que tenho a dizer para já, mas o Clube de Futebol Os Belenenses não vai deixar de considerar outras formas de acção nesta situação, incluindo meios judiciais se necessário. É preciso trazer a verdade de volta ao futebol, e o desfecho deste desafio não reflecte a verdade do que se passou dentro das quatro linhas.
O que está em causa não é somente a atribuição de um troféu, o que está em causa é a justiça no desporto-rei, é a honra de 11 profissionais -- superiores intérpretes da modalidade -- que vêem defraudados os seus direitos pela forma irregular com que se deram os acontecimentos no Jamor, que aliás contrariam as mais básicas regras da ética desportiva.»

Gostava de salientar as principais frases, de apuradíssimo, refinado mesmo, bom gosto, como não podia deixar de ser.

‘sobejas e soberanas’ – Gosto. Seria um bom anúncio para farturas ou para queijadinhas de Sintra, no fundo as verdadeiras razões que podem levar cidadãos normais e pagadores de impostos a passarem umas horas em ansiolíticas meditações ali um pouco acima do túmulo do Camões.

‘há circunstâncias que não vou referir’ - Eu penso que a vida é essencialmente determinada por circunstâncias que um tipo nunca refere. É da nossa natureza, temos todos um pouco os nossos momentos de toupeira, muitas vezes não sabemos é em que buraco estamos metidos. Aliás, ser do ‘CF Os Belenenses’ (o nome já encerra uma certo amor à gramática, por exemplo) é certamente um desses fenómenos que nem uma combinação de genética com antropologia criativa consegue explicar decentemente. E seria mesmo uma tragédia, não fora a frase seguinte:

‘isto virá tudo ao de cima’ – expressão verdadeiramente apocalíptica e de ligeiro pendor escatológico mas que apresenta uma pequena réstia de esperança à condição humana: um dia saber-se-á tudo. É bonito. É a vitória do azeite a caminhar sobre as águas. Ou, no fundo, a libertação da canela face ao pastel. Ou mesmo o domínio de J.Jesus sobre o plantel.

‘É tudo o que tenho a dizer para já’ – Ficar sempre com algo para dizer é um tradicional sinal de sabedoria. Pode ser também gaguez, entalanço de qualquer croquete no goto como já aconteceu ao teu anfitrião mor (o de cá foi apenas com bolo rei – tu não apanhas algumas piadas, mas depois eu explico-te por mail se não isto nunca mais acaba) mas se for acompanhado por um respirar meio tuberculoso e um olhar distante é garantia de auditório e royalties para mais de 20 anos.

‘É preciso trazer a verdade de volta’ – É um dos problemas para aqueles que deixaram a verdade ir-se embora por falta de verba. Uns puseram-na a render, outros no prego, mas para um clube pequeno entre Monsanto e o Dafundo será sempre difícil manter a verdade. No caso dos lagartos é diferente porque só vendemos as verdades ainda tenrinhas para depois as trocarmos por grande galgas, o que, como se sabe, resulta em meias verdades, provada garantia de sucesso em qualquer ramo de actividade, microeconomia e decoração de interiores incluídas.

‘pela forma irregular com que se deram os acontecimentos’ – Estamos agora a entrar pela via da fenomenologia criativa. Os acontecimentos são o que nós queremos que eles sejam, isto é uma conquista da Física quântica e da CNN; no fundo o que distingue o CIF, do Club de Belém é que o restaurante deste tem melhor vista, tirando, claro, o dia em que a Sharapova fosse lá bater bolas e comer saladinha de polvo. Pior que um acontecimento ocorrido de forma irregular só mesmo um bacalhau à Brás sem o próprio Brás estar presente, ou com o Zé do Pipo armado ao pingarelho.


‘mais básicas regras da ética’ – Estamos certamente na presença dum novo decálogo, desta vez gravado e inscrito numa base de massa folhada com três de farinha, uma de gema e duas de hermesetas, em que os mais fracos têm direito a lixar os mais fortes em vão, a prescindir da castidade em caneladas e carrinhos, e a amar a falta de jeito acima de todas as coisas.

E que jamais se vejam ‘defraudados dos vossos direitos de forma irregular’, nem ‘reduzidos a nadas por pequenos pormenores’ é o meu desejo.

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