conto dos amores que nunca darão pulitzers

Suplício e Felicidade tinham-se conhecido entre dois croissants recheados. Ela escolhera de morango, mostrando frescura e juventude, e ele optara por caramelo, dando a entender luxúria e insaciedade. Mas como nunca sequer tinham pronunciado tamanhas palavras mantiveram o chamado engate de olhar, aquele que está a meio caminho entre o platonismo da caverna e o atrevimento da caserna. A primeira tarde juntos passaram ali em Linda-a-Pastora, numa pastelaria especializada em mil folhas que não deixavam a marca do enfarinhado nos beiços. Falaram dos primeiros tempos de Fátima Lopes, do Rodrigues Guedes de Carvalho, de uma música de Eugénia Melo e Castro que tinham por coincidência ouvido no corredor das toalhitas húmidas do Feira Nova, e riram-se a bom rir do Alberto João Jardim, «aquilo é que é um homem», chegou ela a dizer, «é ele e o Pinto da Costa», concluíram já quase de mão dada quando descobriram que os avós eram do pé de Freamunde. Ele andava a montar roupeiros e rodapés num empreendimento novo na Abuxarda e foi aí que marcaram o segundo encontro. Ela era manicura e pedicura ao domicílio com clientes que iam da Quinta da Bicuda até Almoçageme. «Coitadinha, já nem deves poder das costas» disse ele com uma ternura genuína dos homens que vivem das artes da madeira. «Tu deve ser bem pior por causa de teres de andar agachado» desabafou ela, como troca sincera de preocupações. [Só quem sua a trabalhar pode ser verdadeiramente sincero. Corpo que não saiba a sal no fim do dia é um corpo hipócrita]. O café da Abuxarda era moderno e ainda cheirava ao estuque – se bem que ao princípio parecia baunilha – não tinha propriamente especialidades mas a coca cola tinha bom aspecto, até porque serviam com gelo; «como em Espanha» disse ele, que tinha montado um aparthotel em Huelva. Já os uniam bastantes coisas, mas quando descobriram que ambos gostavam de leitão e fanecas fritas pareceu-lhes a prova definitiva de que estavam feitos um para o outro. Agora só lhes faltava um beijo na praia. Tinham ouvido dizer que um verdadeiro amor só se selava à beira mar, e num sítio onde as águas se revoltavam junto às rochas só com o calcário desenhado por testemunha.

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