'Ser liberal como opção quando já palpita um' Estado-nação?
Manifesto pelo ‘sim’ à burocracia
Custa-me ver o país a querer simplificar-se. O Estado deve ser barroco nos procedimentos, maneirista no contacto com os cidadãos, e suprematista na sua autocrítica. O cidadão é um elemento frágil do sistema social e não tem capacidade para se organizar sem um devido enquadramento de formulários, despachos intercalares e deferimentos.
O acompanhamento do cidadão deve ser efectuado em várias sedes, somos todos uma fusão de corpo, direitos, alma e vícios, pelo que nenhum documento deverá ser de única via, só o quadruplicado protege o cidadão atormentado.
O cidadão só deverá ser confrontado com o sufrágio directo em casos de extrema delicadeza, como seja o uso da epidural, da terebintina, ou o teor de calcário na água benta, e de preferência deverão ser aproveitados experientes administrativos já bem rodados e oleados, como a declaração do irs, o selo do carro, ou, no limite, os cartões de boas festas da unicef.
O poder é pela sua essência transitivo e deve ser exercido em puro estado de representatividade. A liberdade do indivíduo deve ser algo adquirido; todos devemos nascer reclusos, doentes e réus, e ter de conquistar o livre arbítrio da cidadania progressivamente, cumprindo os procedimentos predefinidos.
Todo o cidadão tem o direito a ser um número, um dado, e, em sociedades mais desenvolvidas, um ficheiro; todos devemos ter o nosso lugar no google earth e para isso deveria ser fornecido um boné individualizado com o nosso código de barras pessoal no cocuruto. Cidadão que não é controlado, não é eficiente, cidadão que decide sozinho e sem um caminho previamente documentado é oficialmente um perigo para os outros e para si próprio.
O interesse individual não deve ser mais que um registo informático, uma estatística. A sociedade deve ser vista como um presépio e o Estado deve cumprir todas as funções: de n. senhora, s. José, vaquinha e jumento; até a Redenção está intimamente ligada a um recenseamento. Medir deve ser uma obsessão do Estado, ser medidos uma devoção do cidadão.
Só existe uma moral: a do Estado. O indivíduo tem apenas o direito a adquirir excepções; todas devem ser pagas, e preferencialmente com o corpinho para evitar descriminações abusivas e injustas. É o princípio do exceptador-pagador. A gestão da excepção é uma das funções mais elevadas do Estado. Preencher o formulário das excepções deverá ser considerada a obrigação mais nobre e prioritária do cidadão.
As leis deverão ser tendencialmente abolidas. O Estado deve evoluir para poder avaliar de forma automática todos os casos individualmente, agir em conformidade e inapelavelmente. O limite é a discriminação perfeita: o cidadão é sempre um freguês ao balcão.
O cidadão deve sentir o Estado como o próprio coração, mas não deve abusar dos actos de contrição para não aleijar o Magno Músculo. O Estado não se justifica por um desígnio de soberania mas de sim de motorização e estabilidade. O conceito de ´poder’ deve ser apenas usado metaforicamente. Sem o Estado o cidadão é uma mera extremidade mal irrigada. A burocracia é o nosso sistema linfático. Devemos protegê-la e acarinhá-la. Um expediente é uma salvação, um despacho um descanso, uma conformidade uma bênção.
O bem comum não existe. O que existe é uma fórmula mágica para vivermos juntinhos. O Estado é a primitiva dessa equação. Saibamos ser variáveis solícitas, e corresponder sempre aos insondáveis desígnios do cálculo burocrático : Todos pelo Estado, todos pela burocracia, chupem todos os dias um rebuçado juntos e nunca mais terão azia. Nem mais um euro para os hospitais do individualismo, quando já palpita um estado que toma conta de nós. Simplificar é tornar-nos insignificantes.
Se quisermos desaguar umas águas pluviais teremos de conceder direitos de excesso de velocidade, se queremos um aborto às 10 semanas e meia teremos de ceder os direitos de abater dois sobreiros, se quisermos construir sobre estacas em cima do mar da palha teremos de deixar enterrar a avozinha no aterro do Piódão, se quisermos comer uns jaquinzinhos fritos, teremos de disponibilizar os direitos de tocar acordeão no poliban a partir da meia noite. E por aí adiante. A equidade e a justiça são algo para se viver nestas pequenas coisas. Um formulário, uma repartição, um despacho, uma concessão. O indivíduo serve para atrapalhar, é a sua razão de existir.
Manifesto pelo ‘sim’ à burocracia
Custa-me ver o país a querer simplificar-se. O Estado deve ser barroco nos procedimentos, maneirista no contacto com os cidadãos, e suprematista na sua autocrítica. O cidadão é um elemento frágil do sistema social e não tem capacidade para se organizar sem um devido enquadramento de formulários, despachos intercalares e deferimentos.
O acompanhamento do cidadão deve ser efectuado em várias sedes, somos todos uma fusão de corpo, direitos, alma e vícios, pelo que nenhum documento deverá ser de única via, só o quadruplicado protege o cidadão atormentado.
O cidadão só deverá ser confrontado com o sufrágio directo em casos de extrema delicadeza, como seja o uso da epidural, da terebintina, ou o teor de calcário na água benta, e de preferência deverão ser aproveitados experientes administrativos já bem rodados e oleados, como a declaração do irs, o selo do carro, ou, no limite, os cartões de boas festas da unicef.
O poder é pela sua essência transitivo e deve ser exercido em puro estado de representatividade. A liberdade do indivíduo deve ser algo adquirido; todos devemos nascer reclusos, doentes e réus, e ter de conquistar o livre arbítrio da cidadania progressivamente, cumprindo os procedimentos predefinidos.
Todo o cidadão tem o direito a ser um número, um dado, e, em sociedades mais desenvolvidas, um ficheiro; todos devemos ter o nosso lugar no google earth e para isso deveria ser fornecido um boné individualizado com o nosso código de barras pessoal no cocuruto. Cidadão que não é controlado, não é eficiente, cidadão que decide sozinho e sem um caminho previamente documentado é oficialmente um perigo para os outros e para si próprio.
O interesse individual não deve ser mais que um registo informático, uma estatística. A sociedade deve ser vista como um presépio e o Estado deve cumprir todas as funções: de n. senhora, s. José, vaquinha e jumento; até a Redenção está intimamente ligada a um recenseamento. Medir deve ser uma obsessão do Estado, ser medidos uma devoção do cidadão.
Só existe uma moral: a do Estado. O indivíduo tem apenas o direito a adquirir excepções; todas devem ser pagas, e preferencialmente com o corpinho para evitar descriminações abusivas e injustas. É o princípio do exceptador-pagador. A gestão da excepção é uma das funções mais elevadas do Estado. Preencher o formulário das excepções deverá ser considerada a obrigação mais nobre e prioritária do cidadão.
As leis deverão ser tendencialmente abolidas. O Estado deve evoluir para poder avaliar de forma automática todos os casos individualmente, agir em conformidade e inapelavelmente. O limite é a discriminação perfeita: o cidadão é sempre um freguês ao balcão.
O cidadão deve sentir o Estado como o próprio coração, mas não deve abusar dos actos de contrição para não aleijar o Magno Músculo. O Estado não se justifica por um desígnio de soberania mas de sim de motorização e estabilidade. O conceito de ´poder’ deve ser apenas usado metaforicamente. Sem o Estado o cidadão é uma mera extremidade mal irrigada. A burocracia é o nosso sistema linfático. Devemos protegê-la e acarinhá-la. Um expediente é uma salvação, um despacho um descanso, uma conformidade uma bênção.
O bem comum não existe. O que existe é uma fórmula mágica para vivermos juntinhos. O Estado é a primitiva dessa equação. Saibamos ser variáveis solícitas, e corresponder sempre aos insondáveis desígnios do cálculo burocrático : Todos pelo Estado, todos pela burocracia, chupem todos os dias um rebuçado juntos e nunca mais terão azia. Nem mais um euro para os hospitais do individualismo, quando já palpita um estado que toma conta de nós. Simplificar é tornar-nos insignificantes.
Se quisermos desaguar umas águas pluviais teremos de conceder direitos de excesso de velocidade, se queremos um aborto às 10 semanas e meia teremos de ceder os direitos de abater dois sobreiros, se quisermos construir sobre estacas em cima do mar da palha teremos de deixar enterrar a avozinha no aterro do Piódão, se quisermos comer uns jaquinzinhos fritos, teremos de disponibilizar os direitos de tocar acordeão no poliban a partir da meia noite. E por aí adiante. A equidade e a justiça são algo para se viver nestas pequenas coisas. Um formulário, uma repartição, um despacho, uma concessão. O indivíduo serve para atrapalhar, é a sua razão de existir.
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