Apenas tentando pôr um termo (mais ou menos decente) a isto
{1} {2} {3} {4} {5} {6}
{1} Uma das distracções de Deus deverá ser certamente ver-nos entretidos a brincar com as rocas dos fins e dos princípios, chocalhando os poucos grãozitos de realidade a que se nos é dado a chamar pomposamente de 'fenómenos' nos dias mais iluminados e ‘merdas’ nos dias normais.
Kant no prefácio à ‘Crítica da razão pura’, em 1781, começa assim:
«A razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões, que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem completamente as suas possibilidades.
Não é por culpa sua que cai nessa perplexidade. Parte de princípios, cujo uso é inevitável no decorrer da experiência e, ao mesmo tempo, suficientemente garantido por esta. Ajudada por estes princípios eleva-se cada vez mais alto (como de resto lho consente a natureza) para condições mais remotas. Porém, logo se apercebe de que, desta maneira, a sua tarefa há-de ficar sempre inacabada, porque as questões nunca se esgotam; vê-se obrigada, por conseguinte, a refugiar-se em princípios, que ultrapassam todo o uso possível da experiência e, não obstante, estão ao abrigo de qualquer suspeita, pois o senso comum está de acordo com eles. Assim, a razão humana cai em obscuridades e contradições, que a autorizam a concluir dever ter-se apoiado em erros, ocultos algures, sem contudo os poder descobrir. Na verdade, os princípios de que se serve, uma vez que ultrapassam os limites de toda a experiência, já não reconhecem nesta qualquer pedra de toque.»
A natureza, ou a essência do nosso contacto com a realidade será sempre um dilema intransponível pela nossa condição, e todos na nossa vida oscilaremos entre vértices mais ou menos existencialistas, mais ou menos metafísicos, mais ou menos matrixianos, sem esquecer os momentos ‘deixem-me agora acabar esta torradinha com manteiga que depois eu já trato do vosso problema’. Julgo, no entanto, ser importante dizer, antes de barrar o pãozinho outra vez, que o nosso pensamento – em versão genoma sem enxertos - terá sempre uma natural tendência para fugir dos dramas e angústias das origens, tal como o fumo se afasta do fogo. A autodefesa do pensamento neste processo é reter-se sobre a forma de ‘opinião’. É, refira-se, ao mesmo tempo um descanso e até uma alegria nos espíritos mais dados ao folguedo e às patuscadas.
{2} Passo agora para o Ortega y Gasset (leiam isto como se fosse o jogo do monopólio e os dados estivessem controlados por um batoteiro sem pachorra para certas casas, mas que vai oferecendo uns salgadinhos para compensar a falta de qualidade das piadas) em ‘A Rebelião das massas’, já em 1930:
«A lei da opinião pública é a gravitação universal da história política. (…) Mandar não é o gesto de arrebatar o poder, mas o seu calmo exercício. Em suma, mandar é sentar-se. [já me devia ter lembrado desta merda há muito mais tempo] (…) Contra o que supõe a óptica inocente e folhetinesca, o mando não é tanto questão de punhos quanto de nádegas bem assentes. (…). A soberania da opinião pública, longe de ser uma aspiração utópica, é o que sempre e a toda a hora pesou nas sociedades humanas. (…) A pretensão de dizer o que é que agora se passa no mundo há-de entender-se, pois, como que ironizando-se a si mesma. (…) Todo o conceito, o mais vulgar como o mais técnico, está montado (…) nos dentinhos dum sorriso alciónico»
Termos opinião é pois meio caminho para sermos manipulados por quem tem como especialização o arrasto de cardumes e sem música de fundo nem nada. Cardumes produzidos pela decadência do individualismo, na sua propensão crescente a uma ilusão de originalidade e correndo atrás duma «inércia moral, esterilidade intelectual e barbárie omnímoda»( para utilizar outra frase de O y G) tão prenhe de formalismos como uma sociedade que planta decretos lei esperando que medrem sob a forma de bons costumes. Ou coimas.
{3} Quando Freud recuperava a suposição darwiniana duma «horda original submissa à dominação sem limites dum macho poderoso», escrevia em ‘ Psicologia das massas e análise do eu’ (tradução à lagardère da versão francesa da Payot) em 1921 : « (…) a psicologia dessa massa (…) – desaparecimento da personalidade individual consciente, orientação dos pensamentos e dos sentimentos em direcções idênticas, predominância da afectividade e do psiquismo inconsciente, tendência à realização imediata de desejos que surjam – tudo isto corresponde a um estado de regressão a uma actividade psíquica primitiva».
A fuga que inventámos para este cenário de horror, tão distante e tão próximo, foi a de produzirmos um silogismo de ocasião baseado no esquema meio betuminoso: cinco de pensamento-opinião-liberdade-sobrevivência-bem estar, e uma de sexo. E é por isso que Deus só pode entrar na nossa vida, restituindo-nos a nossa unicidade, verdadeiramente, pela porta do Amor. Parece paleio entre o bolor e a traça, desilusão racionalista, eu sei, mas, pessoal, vão por mim; se virem bem, as outras portas, (a do ‘fazer sentido’, a da ‘cosmologia assistida’, a de ‘o espírito mais a sua madrinha transcendência’, ou a do ‘eu tenho cá um dedinho que adivinha’) são todas rotativas.
{4} Seja pela via das carreirinhas de fósseis no penedo da saudade, ou dos sudokus de matemática genética, ou dos patatis patatas à volta do pentateuco, (temas agora novamente sacudidos da poeira mediática pela tal Igreja Católica que aparentemente já não trazia nada de novo à discussão, segundo alguns) podemos persuadir-nos que Deus – de tal forma que até pode arrepiar – tem tanto de absolutamente necessário como de absolutamente irrelevante, e construiu uma camuflagem dolorosa para abrilhantar o conceito mais ‘dramático’ da nossa condição que é a liberdade. É por isso que a luta do homem com o seu destino é uma luta da razão, não é, reconheça-se passo a irreverência apologética, uma luta da fé. Na Revelação e em tudo o que ela tem de desnecessário, de arbitrário, de inconsistente, Jesus pede-nos que acreditemos, mas pede-nos, antes de tudo, que usemos a cabeça – e o coração, claro - com disponibilidade para estar sempre entre o aquém e o além, podendo ‘não reconhecer na experiência a pedra de toque’, como dizia acima a frase de Kant, podendo ‘ironizar em cima da vulnerabilidade dos conceitos’, como dizia Ortega y Gasset, mas protegendo a nossa ‘personalidade individual e afectividade’ dos psiquismos ensombrados ora pela nuvem da culpa ora pela nuvem da incerteza, sabendo de antemão, como em tempos li no Azul Cobalto : que «toda a verdade precisa dum colo para se deixar verdadeiramente beijar, e nessa altura agarra-nos pela cintura de tal maneira que nem precisamos de dançar».
{5} Os princípios de finanças ensinam-nos mais que toda a decifração dos traumas e das angústias, das pétalas e espinhos dos Édens criacionistas e evolucionistas (estes últimos entaramelam muito a língua a pronunciar-se e até é mais daí a minha razão para não confiar totalmente neles) : «Aleatoriedade e irracionalidade não são sinónimos. As variações dos preços são aleatórias porque os investidores são racionais e competitivos» apenas para citar um clássico ( Brealey & Myers, 1988) que pensava certamente em Deus, esse usurário de realidades sem sentido e especulador de derivados em teorias científicas . E é por isso que abandono esta casa que servi com gosto, sem, de facto, nenhuma razão específica ( é pá, só se foi por ter começado a precisar de lentes para ver ao perto, aishhh..), na certeza de que, somos todos, no fundo, pombos correios, ora irritantezinhos, ora encantadores de crianças e velhinhos, ora certeiros no pombal, ora perdidos que nem o mindinho num dedal, mas esperando que, quanto mais tolo for o borracho, mais Deus ponha a mão por baixo. E já dizia Sta Teresa, logo no prólogo das ‘Moradas’: «creio bem que pouco mais hei-de saber dizer do que já disse, (…) antes temo que hão-de ser quase todas as mesmas».
{6} E para Portugal, o destino que a minha rica mãe lhe desenhou já nem me lembro há quantos anos: o mais que se lhe pode desejar é que seja um paraíso para criados de mesa.
Um bom Natal para todos, e que Deus Nosso Senhor propicie à lagartada um ano santo.
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{1} Uma das distracções de Deus deverá ser certamente ver-nos entretidos a brincar com as rocas dos fins e dos princípios, chocalhando os poucos grãozitos de realidade a que se nos é dado a chamar pomposamente de 'fenómenos' nos dias mais iluminados e ‘merdas’ nos dias normais.
Kant no prefácio à ‘Crítica da razão pura’, em 1781, começa assim:
«A razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões, que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem completamente as suas possibilidades.
Não é por culpa sua que cai nessa perplexidade. Parte de princípios, cujo uso é inevitável no decorrer da experiência e, ao mesmo tempo, suficientemente garantido por esta. Ajudada por estes princípios eleva-se cada vez mais alto (como de resto lho consente a natureza) para condições mais remotas. Porém, logo se apercebe de que, desta maneira, a sua tarefa há-de ficar sempre inacabada, porque as questões nunca se esgotam; vê-se obrigada, por conseguinte, a refugiar-se em princípios, que ultrapassam todo o uso possível da experiência e, não obstante, estão ao abrigo de qualquer suspeita, pois o senso comum está de acordo com eles. Assim, a razão humana cai em obscuridades e contradições, que a autorizam a concluir dever ter-se apoiado em erros, ocultos algures, sem contudo os poder descobrir. Na verdade, os princípios de que se serve, uma vez que ultrapassam os limites de toda a experiência, já não reconhecem nesta qualquer pedra de toque.»
A natureza, ou a essência do nosso contacto com a realidade será sempre um dilema intransponível pela nossa condição, e todos na nossa vida oscilaremos entre vértices mais ou menos existencialistas, mais ou menos metafísicos, mais ou menos matrixianos, sem esquecer os momentos ‘deixem-me agora acabar esta torradinha com manteiga que depois eu já trato do vosso problema’. Julgo, no entanto, ser importante dizer, antes de barrar o pãozinho outra vez, que o nosso pensamento – em versão genoma sem enxertos - terá sempre uma natural tendência para fugir dos dramas e angústias das origens, tal como o fumo se afasta do fogo. A autodefesa do pensamento neste processo é reter-se sobre a forma de ‘opinião’. É, refira-se, ao mesmo tempo um descanso e até uma alegria nos espíritos mais dados ao folguedo e às patuscadas.
{2} Passo agora para o Ortega y Gasset (leiam isto como se fosse o jogo do monopólio e os dados estivessem controlados por um batoteiro sem pachorra para certas casas, mas que vai oferecendo uns salgadinhos para compensar a falta de qualidade das piadas) em ‘A Rebelião das massas’, já em 1930:
«A lei da opinião pública é a gravitação universal da história política. (…) Mandar não é o gesto de arrebatar o poder, mas o seu calmo exercício. Em suma, mandar é sentar-se. [já me devia ter lembrado desta merda há muito mais tempo] (…) Contra o que supõe a óptica inocente e folhetinesca, o mando não é tanto questão de punhos quanto de nádegas bem assentes. (…). A soberania da opinião pública, longe de ser uma aspiração utópica, é o que sempre e a toda a hora pesou nas sociedades humanas. (…) A pretensão de dizer o que é que agora se passa no mundo há-de entender-se, pois, como que ironizando-se a si mesma. (…) Todo o conceito, o mais vulgar como o mais técnico, está montado (…) nos dentinhos dum sorriso alciónico»
Termos opinião é pois meio caminho para sermos manipulados por quem tem como especialização o arrasto de cardumes e sem música de fundo nem nada. Cardumes produzidos pela decadência do individualismo, na sua propensão crescente a uma ilusão de originalidade e correndo atrás duma «inércia moral, esterilidade intelectual e barbárie omnímoda»( para utilizar outra frase de O y G) tão prenhe de formalismos como uma sociedade que planta decretos lei esperando que medrem sob a forma de bons costumes. Ou coimas.
{3} Quando Freud recuperava a suposição darwiniana duma «horda original submissa à dominação sem limites dum macho poderoso», escrevia em ‘ Psicologia das massas e análise do eu’ (tradução à lagardère da versão francesa da Payot) em 1921 : « (…) a psicologia dessa massa (…) – desaparecimento da personalidade individual consciente, orientação dos pensamentos e dos sentimentos em direcções idênticas, predominância da afectividade e do psiquismo inconsciente, tendência à realização imediata de desejos que surjam – tudo isto corresponde a um estado de regressão a uma actividade psíquica primitiva».
A fuga que inventámos para este cenário de horror, tão distante e tão próximo, foi a de produzirmos um silogismo de ocasião baseado no esquema meio betuminoso: cinco de pensamento-opinião-liberdade-sobrevivência-bem estar, e uma de sexo. E é por isso que Deus só pode entrar na nossa vida, restituindo-nos a nossa unicidade, verdadeiramente, pela porta do Amor. Parece paleio entre o bolor e a traça, desilusão racionalista, eu sei, mas, pessoal, vão por mim; se virem bem, as outras portas, (a do ‘fazer sentido’, a da ‘cosmologia assistida’, a de ‘o espírito mais a sua madrinha transcendência’, ou a do ‘eu tenho cá um dedinho que adivinha’) são todas rotativas.
{4} Seja pela via das carreirinhas de fósseis no penedo da saudade, ou dos sudokus de matemática genética, ou dos patatis patatas à volta do pentateuco, (temas agora novamente sacudidos da poeira mediática pela tal Igreja Católica que aparentemente já não trazia nada de novo à discussão, segundo alguns) podemos persuadir-nos que Deus – de tal forma que até pode arrepiar – tem tanto de absolutamente necessário como de absolutamente irrelevante, e construiu uma camuflagem dolorosa para abrilhantar o conceito mais ‘dramático’ da nossa condição que é a liberdade. É por isso que a luta do homem com o seu destino é uma luta da razão, não é, reconheça-se passo a irreverência apologética, uma luta da fé. Na Revelação e em tudo o que ela tem de desnecessário, de arbitrário, de inconsistente, Jesus pede-nos que acreditemos, mas pede-nos, antes de tudo, que usemos a cabeça – e o coração, claro - com disponibilidade para estar sempre entre o aquém e o além, podendo ‘não reconhecer na experiência a pedra de toque’, como dizia acima a frase de Kant, podendo ‘ironizar em cima da vulnerabilidade dos conceitos’, como dizia Ortega y Gasset, mas protegendo a nossa ‘personalidade individual e afectividade’ dos psiquismos ensombrados ora pela nuvem da culpa ora pela nuvem da incerteza, sabendo de antemão, como em tempos li no Azul Cobalto : que «toda a verdade precisa dum colo para se deixar verdadeiramente beijar, e nessa altura agarra-nos pela cintura de tal maneira que nem precisamos de dançar».
{5} Os princípios de finanças ensinam-nos mais que toda a decifração dos traumas e das angústias, das pétalas e espinhos dos Édens criacionistas e evolucionistas (estes últimos entaramelam muito a língua a pronunciar-se e até é mais daí a minha razão para não confiar totalmente neles) : «Aleatoriedade e irracionalidade não são sinónimos. As variações dos preços são aleatórias porque os investidores são racionais e competitivos» apenas para citar um clássico ( Brealey & Myers, 1988) que pensava certamente em Deus, esse usurário de realidades sem sentido e especulador de derivados em teorias científicas . E é por isso que abandono esta casa que servi com gosto, sem, de facto, nenhuma razão específica ( é pá, só se foi por ter começado a precisar de lentes para ver ao perto, aishhh..), na certeza de que, somos todos, no fundo, pombos correios, ora irritantezinhos, ora encantadores de crianças e velhinhos, ora certeiros no pombal, ora perdidos que nem o mindinho num dedal, mas esperando que, quanto mais tolo for o borracho, mais Deus ponha a mão por baixo. E já dizia Sta Teresa, logo no prólogo das ‘Moradas’: «creio bem que pouco mais hei-de saber dizer do que já disse, (…) antes temo que hão-de ser quase todas as mesmas».
{6} E para Portugal, o destino que a minha rica mãe lhe desenhou já nem me lembro há quantos anos: o mais que se lhe pode desejar é que seja um paraíso para criados de mesa.
Um bom Natal para todos, e que Deus Nosso Senhor propicie à lagartada um ano santo.
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