Conto do ibseniano escrupuloso

Não cabia em si de contente quando soube que a história de Gynt era inventada, que afinal Deus compreendia sem ser necessário apresentar atestado de sofrimento, ou prova de esforço, bastaria um electrofodiograma normalzinho, e que Deus tinha inventado o suspiro mas passava bem sem ele naquele momento em que a sabedoria de vida valerá tanto como um carrocel sem crianças. Era ibseniano desde que aprendera a gerir o ‘eterno adiamento’, desde que soubera suspender o tempo, enrolá-lo, mas com o passar dos dias tinha-se deixado atormentar pelo sucesso, e pelo insucesso, pelas encruzilhadas mal assinaladas na vida; nem tudo poderia continuar a ser como a vesícula de Mexia, ou como o violino de Ingres ou como os frúnculos na virilha de Napoleão, alguma realidade teria de ser condimentada, cozinhada, senão tudo se resumiria a uma vida crua, a uma alma tártara. Tinha chegado a congeminar um casamento por interesse, virou-se depois para uma paixão impossível de chegar a vias de sopa de legumes e pijama aquecido, tentou ainda uma ligação desprendida mas realista e sem bichos de estimação, mas acabou fechado sobre si próprio a apregoar morais à façon entre negócios de merchandise com uma percentagem controlada de contrafacção. Conseguiu um papel de chave na mão numa vida de pouco palco mas encomendada por uma plateia de sorrisos amarelos e rabos dormentes. Fazia tudo bem feitinho porque tinha aprendido que nas existências possíveis não havia lugar para ilusões incompetentes, e que, tal como Peer tinha dito às raparigas, há sempre ‘espaço suficiente para enfiar uma alma’; certamente o que o criador também terá pensado no dia em que imaginou um casal de orangotangos de mão dada.

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