Conto do life hei-de

Tinham-se conhecido num concerto, ela ainda corria descalça mas ele já vinha saído dum aperto; improvável aquele encontro, mas mais uma vez o narrador prepara o arranjinho: dá-lhe um toque no vestido, põe-lhe os joelhos a brilhar, cozinha-lhe um coração ferido e uns olhos a arregalar. Tudo se torna possível naquele relvado, desde um beijo inesperado até um abraço apertado, desde o desejo mais viscoso até ao desabafo mais doloroso. A música agora era calma e por isso dedicaram-se a constatações: verificavam-se mutuamente, queriam anular as diferenças e reduzir as surpresas, o narrador deixou que eles se continuassem a enganar porque não queria interferir no alinhamento do concerto, vejam lá; mas o que não tem conserto consertado está: dali ia sair uma vidinha a dois, algumas fornicações ainda teriam a gloria dos encores, depois alguns sins começariam a dar em pois, e no final já não se distinguiam os acordes. Foi preciso arranjar outro concerto, entraram de mãos dadas, roçaram-se como nos velhos tempos, ele mordeu-a no pescoço, ela chegou a estremecer como uma amante ensinada, sabiam que já estavam a roer a paixão na zona do osso, riram-se numa tonalidade menos amarelada, depois choraram, depois riram, e foi só o que este olhos viram, porque eles depois foram para trás dum arbusto ansiando pela emoção juvenil dum susto, confiando-se naquele sexo reparador, religioso, dos livros. Mas ela saiu de lá descalça, trazendo no cabaz um ‘hei-de ser capaz’, era bom sinal, estava pronta para sofrer outra vez, essa sim a verdadeira garantia da felicidade, e esta sim a verdade em apreço, o coração d’ele era apenas um adereço. Um cinto para apertos.

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