O estado da arte
Ao terceiro dia sou capaz de identificar com algum grau de certeza 15 dos pràí 250 frascos, bisnagas e caixinhas que a Zu tem na bancada da casa de banho. Hoje no banho, por exemplo, já consegui usar a máscara capilar hidratante no cabelo em vez do exfoliante para o corpo e descobri no "anti-cernes" a varinha de condão para uma noite de insónia. E tudo isto antes de ter mergulhado na nuvem do perfume dela com o prazer e a elegância daquela rapariga do anúncio da tv a entrar no mar das Caraíbas mas fiquei um bocado zonzo e o "eye-liner" saiu-me um tanto atravessado. Até fiquei a pensar se o tirava ou deixava estar para ficar parecido com uma miúda loira dum retrato que vi num daqueles livros dos brindes (um daquele espanhol que desenhava muitos passarinhos, o Picasso) e assim me tornava mais interessante aos olhos do Umbelino porque não é novidade para ninguém que poucos homens conseguem ser minimamente interessantes à luz da manhã. Aproveitei a viagem de metro para escrever um poemazinho nas margens da Bola, dois espirros depois até me inspirei na primavera e fui capaz de alinhar duas rimas sobre sementinhas aladas (uma vez explicaram-me que não vinha de "ala que se faz tarde") a voarem como beijos pelo ar e tudo, e até já era capaz de perceber que se me esmerasse muito ia acabar por ser capaz de falar sobre o silêncio das pétalas das flores afagadas, dos riscos na alma que são as ausências e, quem sabe, de arcos de violino a vibrarem-me nas cordas vocais uma música que me saía pelos olhos e se me espalhava em cores pelos dedos. Enfim, um labirinto de inteligência e sensibilidade, uns toques de irreverência aqui, uns tracinhos de sensualidade ali, afinal o que se pede a uma mulher que se preze. Entrei no escritório orgulhoso, iria surpreender o Lino com a revelação do desabrochar do meu novo "eu". Ao entrar na sala da encadernação turvou-se-me a vista: nas costas da Maria dos Prazeres, ao que me pareceu mal sentada em cima de qualquer coisa espalhada pelo chão porque se mexia e desequilibrava muito, umas mãos conhecidas desenhavam silêncios enquanto a voz-do-dono gritava airosa "Ah, ganda Andromaca!". No momento pensei logo "Também não é preciso aquela violência toda para ensinar mitologia à rapariga, não? no meu tempo a professora de História, apesar de uma chata sem classificação, era muito mais delicada" Mas depois caí em mim e fez-se-me luz, a luz crua da manhã: acabava de passar do saboroso estatuto de homem-objecto com que a ternura da Zu me brindava para o de mulher-objecto e isso não ia tolerar nem mais um minuto! Em voz forte lancei ao Lino "Está tudo acabado!" e ouvi-o responder com alguma dificuldade "Ainda não, só mais um bocadinho, ó pá!" Mareei de novo, até me passaram pelos olhos uns graffitis (devem ser bons porque os vi num livro dos brindes e eram de um tipo que se chamava Alecs-qualquer-coisa), comecei a torcer o meu lado feminino em Kleenexes até não sobrar gotinha nenhuma e respondi-lhe a fio de voz antes de sair para me atirar a uma água gaseificada aromatizada e um 'palmier' coberto na pastelaria da esquina: "Nem uma paisagenzita aconchegante soubeste dar-me... Se não eras capaz de mais porque me desapertaste assim o coração? Cobra... cobra..."
Ao terceiro dia sou capaz de identificar com algum grau de certeza 15 dos pràí 250 frascos, bisnagas e caixinhas que a Zu tem na bancada da casa de banho. Hoje no banho, por exemplo, já consegui usar a máscara capilar hidratante no cabelo em vez do exfoliante para o corpo e descobri no "anti-cernes" a varinha de condão para uma noite de insónia. E tudo isto antes de ter mergulhado na nuvem do perfume dela com o prazer e a elegância daquela rapariga do anúncio da tv a entrar no mar das Caraíbas mas fiquei um bocado zonzo e o "eye-liner" saiu-me um tanto atravessado. Até fiquei a pensar se o tirava ou deixava estar para ficar parecido com uma miúda loira dum retrato que vi num daqueles livros dos brindes (um daquele espanhol que desenhava muitos passarinhos, o Picasso) e assim me tornava mais interessante aos olhos do Umbelino porque não é novidade para ninguém que poucos homens conseguem ser minimamente interessantes à luz da manhã. Aproveitei a viagem de metro para escrever um poemazinho nas margens da Bola, dois espirros depois até me inspirei na primavera e fui capaz de alinhar duas rimas sobre sementinhas aladas (uma vez explicaram-me que não vinha de "ala que se faz tarde") a voarem como beijos pelo ar e tudo, e até já era capaz de perceber que se me esmerasse muito ia acabar por ser capaz de falar sobre o silêncio das pétalas das flores afagadas, dos riscos na alma que são as ausências e, quem sabe, de arcos de violino a vibrarem-me nas cordas vocais uma música que me saía pelos olhos e se me espalhava em cores pelos dedos. Enfim, um labirinto de inteligência e sensibilidade, uns toques de irreverência aqui, uns tracinhos de sensualidade ali, afinal o que se pede a uma mulher que se preze. Entrei no escritório orgulhoso, iria surpreender o Lino com a revelação do desabrochar do meu novo "eu". Ao entrar na sala da encadernação turvou-se-me a vista: nas costas da Maria dos Prazeres, ao que me pareceu mal sentada em cima de qualquer coisa espalhada pelo chão porque se mexia e desequilibrava muito, umas mãos conhecidas desenhavam silêncios enquanto a voz-do-dono gritava airosa "Ah, ganda Andromaca!". No momento pensei logo "Também não é preciso aquela violência toda para ensinar mitologia à rapariga, não? no meu tempo a professora de História, apesar de uma chata sem classificação, era muito mais delicada" Mas depois caí em mim e fez-se-me luz, a luz crua da manhã: acabava de passar do saboroso estatuto de homem-objecto com que a ternura da Zu me brindava para o de mulher-objecto e isso não ia tolerar nem mais um minuto! Em voz forte lancei ao Lino "Está tudo acabado!" e ouvi-o responder com alguma dificuldade "Ainda não, só mais um bocadinho, ó pá!" Mareei de novo, até me passaram pelos olhos uns graffitis (devem ser bons porque os vi num livro dos brindes e eram de um tipo que se chamava Alecs-qualquer-coisa), comecei a torcer o meu lado feminino em Kleenexes até não sobrar gotinha nenhuma e respondi-lhe a fio de voz antes de sair para me atirar a uma água gaseificada aromatizada e um 'palmier' coberto na pastelaria da esquina: "Nem uma paisagenzita aconchegante soubeste dar-me... Se não eras capaz de mais porque me desapertaste assim o coração? Cobra... cobra..."
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