Conto das unhas pintadas só com uma demão

Tinham-lhe dito que não valia o esforço de escrever mais sobre mãos porque esse já era um assunto estafado. Coitado. E ele que era um escritor consagrado. Via chamas onde os outros só faziam ginástica com as pestanas e bastava-lhe dançar com o roçar do polegar onde outros teriam de lamber se quisessem uma sensação como deve de ser. Mas naquele dia precisou duma mão da qual já tivesse recebido uma carícia, duma mão que já tivesse tocado, não iria portanto ser verdadeiramente escritor, aquilo mais seria um mero endosso, escreveria com dor mas sem esforço. Só que a mão apareceu-lhe de forma fulgurante, poderia tocar-lhe claro, mas nunca passaria dum mero figurante, beijá-la-ia, mordê-la-ia, claro, e por aí adiante, mas aquele verniz vermelho torná-lo-ia sempre um fedelho, gerindo o embasbaque, querendo dizer qualquer coisa mas fugindo-lhe sempre para as frases de almanaque, por isso começou a olhá-las como um troféu, ficaria lá preso mesmo sem ter sido réu, mas assim tinha de desistir de ser escritor, só se fosse desertor, e quisesse fugir daquela feérica batalha: umas mãos feitas acendalha. Mas ele foi à guerra, não era dos que se ficava, e mais tarde começou a escrever, com aquela angústia de já não as estar a ver, e de repente elas começaram a serpentear-lhe de novo aos olhos, Deus sabe escolher os momentos, pois foi Ele que criou as cores da volúpia com a mesma mezinha com que inspirou o seu Filho a debitar as bem-aventuranças, e que leva algumas mulheres a fazerem tranças, e assim lhas pôs outra vez à frente como crianças, mascaradas, malcriadas, bem amadas, encantadas. E foi então que aquelas mãos terminadas em incandescência, depois de o terem feito sonhar-se navegador, depois de terem despedido o Adamastor, no final daquela desconcertada milícia, serviram para dizer um adeus, mas que veio despojado da carícia. Escrevia agora já cansado, porque afinal nunca aquele encarnado, que nem de vinho nem de mosto, lhe chegou a tocar no rosto e vivia agora envolto numa penumbra. Mas mesmo assim cor rebelde mostra-te, deslumbra, e depois morre e faz dos dedos catacumba.

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