Contos duma gajita



Uma vez perguntaram-lhe se era com aquela rapariga com cara de anjo que ele se ia casar. Ele riu-se encavacado - não é uma palavra muito bem esgalhada encavacado - e deve ter ficado com um olhar de miúdo que nem cabia em si de contente e orgulhoso por ter desencaminhado um anjo nem que fosse só de cara. Os anos passaram e ele soube entretanto que essa cara de anjo o achou mesmo um miúdo, se espantou por ele ser ainda um miúdo, se calhar se desiludiu de vez em quando por ele ser apenas um miúdo, e chegou a pensar que não era possível haver ainda miúdos assim e ela ter sido metida numa canja dessas. De facto, se os anjos tiverem pele, a pele deles será assim, como a dela, agora nem sei bem se lhe deves dar isto a ler, não quero que fiques encavacado outra vez, ela vai logo dizer que és parvo, claro, mas isso também faz parte, é uma espécie de bater d’asas, para se manter no ar, para se defender dos voos picados que muitas vezes tem de fazer para te segurar, mal sabe ela que tu se calhar estás é seguro demais, mas pronto, ela também não pode saber tudo, o importante é que saiba que tu, quando lhe tocas na pele, ainda cheiras o mesmo do primeiro dia, ainda sentes o mesmo veludo entrelaçado com seda que se cardaram no teu olhar, ainda te afliges com as suas lágrimas, e ainda gostas de mandar os horríveis ganchos, ou molas, ou clips, ou o que é aquela merda – isto é um conto, atenção - do cabelo pela janela fora.

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