Hoje estou de trompas



Sou um leitor com muito pouca personalidade. Deixo-me levar. Por isso uso repelente para a crítica literária. Porque ainda gosto de ser levado. Não foram poucas as vezes que no passado a critica literária me estragou leituras.

Ontem fui dar de frente com um dos que a crítica me estragou a meio da leitura: “Fúria” do Salman Rushdie. Escritor de que gosto. Pronto, gosto. Pelos vistos ia na página 118 «- Suponho que estejas a ovular – disse ele, e Eleanor afastou a cara como se ele lhe tivesse batido» Bem, não sei se teria chegado a ler esta frase. Felizmente. Aquilo não é coisa que se diga a uma senhora. Um crítico literário, sim ...esse sim, tem tendência a estar sempre a ovular; precisa de estar prenhe de esperma semântico.



Mas nos dias de hoje muito boa gente vive com esta fecundação palavrosa, resultado talvez de alguma jactância precoce. Mal “preservativada”, não sei. Muitas vezes disfarçada da célebre autocomiseração estética. De efeito esgotado. «Mas eu estou a falar de quê?». « Alguém te fez mal?» Não. Mas que já me estragaram umas leituras, isso já. Falta de personalidade minha é o que é.



Na análise política passa-se um bocado o mesmo. Só que o adereço da previsibilidade ainda estraga mais a decoração. E os tempos que correm acentuaram esta previsibilidade, engalanaram-na com o rococó da ironia e puff ! vai-se a ver é tudo gesso! E porquê ? Porque nos contentamos em encontrar um caminho. Gostamos apenas de saber que estamos bem encarrilados, que paramos nos apeadeiros certos, fazemos agulha quando é preciso, e conhecemos todos os trinca-bilhetes da carreira que usamos. Abre-se de vez em quando a janelita para arejar e pouco mais.



O argumentário envidraçado do debate político permite apenas uma pescaria de espécies de aviário: as que escamam na esguelha da esquerda e as que escamam na esguelha da direita. Nem se guerreiam, apenas se guelreiam. O oxigénio é sacado do puro e estéril contraditório. E por isso estão sempre a desovar em areias muito batidas. Ah! Porra! agora é que eu percebi onde queria chegar a personagem do Rushdie. Chiça, as voltas que eu tive de dar. Afinal devia tomar mais atenção aos críticos literários. Ou ter sido ginecologista.

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