Bela Calhau (II)

 

O que seria dos histéricos se não existisse o apocalipse. O que seria dos fleumáticos se não fosse o ridículo. O que seria dos cínicos se não fossemos mortais. O que seria dos quessefodistas se tivéssemos mesmo memória.

A decisão do poder ser repartido por grupos de pose e não por grupos de ideologias tem-se mostrado bastante equilibrada. E acrescentada a possibilidade de termos forçosamente de mudar de pose em cada dois anos ficamos próximos de atingir a perfeição possível.

Bela Calhau tinha sido uma óptima fleumática. A fleuma tinha-a encontrado no arranque da maturidade, naquela fase em que se costuma dizer que as mulheres estão resolvidas (os homens nunca se resolvem), nada têm a provar nem à sua vagina nem à sua mãe. É uma balela, sabe-se, mas este regime das poses permite viver com balelas sem estas nos prejudicarem. Tudo são fases, não se comprometem éticas nem morais, e substitui-se a malograda convicção pelo sentirmos-bem-na-nossa-pele.

Na sua liderança dos fleumáticos Bela Calhau tinha contado com o apoio inicial de Jaime Carapau que estava prestes a passar-se para os cínicos. Nos primeiros tempos em conjunto chegou a pintar um clima mas Bela achava que a fleuma não combinava bem com a paixão. Com Bela Calhau os fleumáticos passaram um período arrasador. Os cínicos pareciam meros brincalhões, os quessefodistas foram desclassificados porque estavam a assumir uma ideologia anarquista e os histriónicos pura e simplesmente resumiram-se a um bando de malucos.

Quando Jaime Carapau se passou para os cínicos e ainda não tinha conseguido aí grande protagonismo, Bela Calhau aproveitou e fez passar a lei da fleuma. A fleuma estava em alta e a lei estipulava: quem se indignasse teria de confinar. A realidade tinha de ser consumida sem convulsões. Pareceu ser uma clara concessão aos quessefodistas apesar de sempre negada por estes. Porteiras, taxistas e twittolas começaram a ter vida difícil e os histéricos viram aí uma crescente base de apoio.

Apesar desta dinâmica, na Comissão DONRA tudo se passava com dignidade. Uma pose combinada e espectável era claramente mais saudável do que uma convicção à solta e muito mais digna do que uma ideologia em roda livre.

Bela Calhau (I)

 

Com uma urgência intestinal a comissão DONRA reuniu-se no palácio da felicidade. Apesar da obrigatória ansiedade dominava a placidez. Os fleumáticos que ultimamente tinham cedido terreno aos cínicos viam uma oportunidade de recuperação e iam esbanjando olhares sobranceiros. O chefe dos histéricos não percebia como não tinha a situação controlada e culpava os moles que faziam constantes compromissos com a facção quessefoda.

Desde que a democracia tinha decidido abolir os partidos e substitui-los por facções de estilo que não havia um congresso (agora denominados comissão DONRA – ‘Democracia Orientada Novamente Rumo A’) tão clivado e imprevisível.

Depois de uma fase em que o Cinismo dominou sobre a Fleuma, agora os histéricos viam uma oportunidade e não iriam permitir que os quessefodistas os impedissem. Os quessefoda viviam marcados pelo rótulo de apaziguadores que lhes colocaram logo após a Revolução CUECA (como ficou chamada a revolução que ‘Com Urbanidade Evoluiremos Calmamente para A’) e também queriam demonstrar que efectivamente não defendiam uma posição apaziguadora (entre as várias facções) mas sim queriam um quessefoda genuíno sem compromissos com qualquer vontade ou convicção nem mesmo tendência.

Apesar de todas as sondagens apontarem para uma vitória folgada dos histéricos os fleumáticos tinham andado a manobrar nos bastidores. Apesar daquele ar de não-fazes-mal-a-uma-mosca os fleumáticos sempre se assumiram como facção reserva e sabiam que na psique humana a fleuma estava entranhada como sinal de sabedoria e mistério. Os histéricos tinham o estigma oposto e viviam de eterno efeito eu-já-tinha-avisado que, também sabiam, a psique humana pura e simplesmente não suportava.

E era nisto que se andava rumo a.

A revolução CUECA tivera o mérito de impedir todos os Planos e era tacitamente proibido expressar qualquer noção de objectivo, orientação, destino, missão, visão. No grande monumento da revolução, complexo estatuário instalado numa Praça em Abrantes, estava inscrito, para não deixar dúvidas: ‘O futuro não pertence ao presente’.

Outro dos grandes méritos da Revolução Cueca foi de impedir que cada deputado permanecesse na sua facção mais de dois anos. Assim, haveria uma constante rotação e imprevisibilidade nas lealdades, cumplicidades, apoios e sustentações. Conspirar e virar-casaca era um estado natural. Especular a regra , prever era uma abominação. A genuinidade estava na pose. A vitória imporia não uma ideologia dominante mas um estilo que deveria preponderar.

Bela Calhau era a actual líder dos histéricos. Depois de passar alguns anos entre os fleumáticos disse-se que fora atraída por uma pulsão de histrionismo mas houve que apenas tivesse descortinado facilidade e tacticismo. Fosse o que fosse Bela Calhau sabia encontrar agora uma pandemia em qualquer bolha de pus e dava voz à porteira que há dentro de todos nós. Era muito difícil ir contra as monções de turno e tanto Fleumáticos como Cínicos e Quessefodistas pouco mais poderiam fazer que deixar Bela ir arrebatando corações ao ritmo do coice da sua retórica.

Mas quem não inveja o eterno encanto daqueles que vêem sempre mais além que os comuns e que, ao ver tão fundo, acabam por deixar a superfície toda para nós. Os Fleumáticos iriam esperar pois a vitória pertence sempre ao entardecer. Não era à toa que o seu lema fora sempre desde o início da Revolução: 'Calmamente Sempre A' .