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anos faz hoje que Churchill nasceu. Tratou-se dum homem que debaixo duma pele vitoriana conseguiu transcender essa sua condição e viver dentro e (mas) suspenso do seu tempo, numa sucessão impressionante de factos (e até contrafactos) históricos. Ainda hoje muito se poderá aprender no que foi dizendo sobre a Rússia, o médio oriente, a democracia, e por aí adiante. Um homem contraditório por excelência, resoluto por devoção e assertivo por vício, avisou-nos para um ocidente: «decided only to be undecided, resolved to be irresolute, adamant for drift». 

Placebo nas canelas

Vamos conviver nos próximos meses com uma figura virtual que, mais pontual ou mais persistentemente, irá condicionar (animar?) a nossa, digamos, relação com a realidade.

Hoje o novo dicionário não ilustrado irá descodificar os seres dos outros mundos, assinalando assim as várias possibilidades que dispõe (e dispomos) aquele de quem se fala e que se instalou seráfica e filosoficamente para as bandas do templo de Diana.

Fantasma – espécie de zeus da paranóia, podemos escolher o formato fumaça ( para evasões fiscais) ou o formato lençol ( para lavagens de capital)

Sombra – entidade da família das assombrações, mas mais acessível para países em rescaldo de regate, pois vivem apenas em 2D. Basta um solzinho em cima para desaparecerem

Vulto – são semelhantes às eminências pardas mas sem a parcela ( sempre mais cara) da eminência. Alimentam-se apenas da fugacidade e podem ser transportados em qualquer porta-luvas

Avatar – algo ali entre o demónio, o parasita e o cookie, e que dá muito boa serventia para lidarmos com quem se andou a avatoar anos a fio.

Alma penada – tratam-se de fantasmas com aspirações espirituais; devemos evitar mesas circulares e ter sempre um qualquer credo junto à boca.

Zombie – o morto-vivo está muito valorizado, mas , bem orientados, podem servir de bons espantalhos para as aves raras.

Gambozino – fusão do reino animal e vegetal que fugiu às leis darwinistas e constitui-se no sobrevivente mais célebre às maçadoras investidas dos viciados em realismo.


O grande objectivo da cidadania moderna será, a partir de hoje, conseguir transformar estes seres do aquém e do além em meros placebos políticos, ou, para os mais românticos, em amantes platónicos. 

O Divã Disto Tudo IV

A imagem da revolução

No fim de semana, semi ofuscado pela nuvem da notícia, o mestre de oratória Louçã, disse, qual trostski do quelhas: «não basta pedalar, pedalar é passear, é preciso derrubar os muros», e depois, João Semedo, na mesma linha, disse que «não havia atalhos para o confronto»

A vida é um manual de convivência entre a conservação e a revolução. Vivendo e alimentando-se uma da outra, amam-se sem poder assumi-lo, qual amantes reprimidos e até secretos.

Mas, por regra, a demagogia encaixa mais na mensagem revolucionária, e esta não a enjeita, cavalgando mesmo nela com prazer. O que seria o homem se não gostasse de enganar, enganar-se, e ser enganado.

O pior das forças revolucionárias está quando perdem a força da demogogia, quando evitam o espírito de coup d’etat. Para que nos serve um revolucionário sem táticas cínicas, sem contradições viscerais e sem manipulação de almas?


Esperava mais das gémeas mortáguas. 

O Divã Disto Tudo III

A imagem da palavra

Os tempos são de eufemismos irónicos; poderíamos usar antes hipérboles exasperantes, mas temos as consciências mais treinadas para o sarcasmo do que para a exaustão. Se geralmente o eufemismo expõe uma capacidade para a ambiguidade, a hipérbole acaba por expor uma inabilidade para a ironia. Ambas são sinaléticas dos tempos. A hipérbole vai ficar como reserva de valor para os carismáticos enquanto o eufemismo fica como o recurso dos pobres de carisma.


Mas tem graça que hoje a acusação de eufemismo tem mais uso do que a acusação de exagero. No fundo, o eufemismo é a hipérbole dos novos tempos. Tempos de controlo de danos. Saudade dos tempos danosos.

O Divã Disto Tudo II

A imagem do Estado

Poderíamos abordar a realidade pelo lado do ‘isto só visto’ , ou então pelo desabafo do ‘quem te visa teu amigo é’, no entanto parece claro que o Estado tem alguma dificuldade em vestir a sua pele e precisa sempre duma mãozinha que começa por ser invisível até estar à vista de todos.

Como muitas vezes no mundo maravilhoso dos negócios a pedra filosofal está na segmentação, e assim, no âmbito da vistocracia, deveriam ser criados vários tipos de vistos para cidadãos fora da comunidade por forma a acelerar a recuperação nacional no sentido da construção do 6º império face à inoperância do 5º.
Assim, deverão estar previstos vários tipos de vistos que acompanhariam o casamento entre as diversas oportunidades e as necessidades criadas pela vida contemporânea. A saber:

Visto Silver – destinado a mulheres estrangeiras que emprenhem pelo menos três vezes com sémen nacional. O filho mais esperto terá ainda direito a uma bolsa e será, depois de licenciado com os nossos impostos, exportado para a Alemanha na condição de repatriar 20% do seu salário.

Visto Gold – destinado a estrangeiros que levem de Portugal pelo menos 3 membros da família BES e que lhes dêem um banco para gerir lá na terra deles- na condição das offshores serem cá

Visto Platina – destinada a descendentes dos judeus expulsos de Portugal que comprem um apartamento na Graça. Posteriormente será definida a Faixa de Graça que será colocada na imprensa internacional como exemplo da capacidade de Portugal em resolver conflitos internacionais

Visto Rainbow – destinado a paneleiros que casem com paneleiros portugueses e assim façam cumprir a lei do acasalamento que parece não apresentar índices de adesão dignos dum país moderno. Por enquanto ainda terão de ir adoptar os filhos que a Angelina Jolie já não conseguir; a coisa pode vir a compor-se, mas sem compromisso.

Visto Yellow submarine – destinado a militares russos que tragam para Portugal os seus equipamentos, como caças, bombardeiros, corvetas ou submarinos, e os disponibilizem, entregando sem restrições às forças armadas portuguesas. Só serão considerados equipamentos que venham com o depósito cheio. No caso de ser um porta-aviões terá de vir também a dispensa abastecida e duas mudas de cama.

Visto White & Green – destinado a estrangeiros que comprem em Portugal um clube de Futebol com o compromisso de perder sempre com o Sporting

Red Visa – Destinado a meninas e senhoras (não exclusivamente tailandesas) que façam (e publicitem devidamente) o número do ovo-projectado-da crica usando apenas ovos provenientes de poedeiras nacionais.

O Divã Disto Tudo

a imagem do poder

Hoje, Carlos Amaral Dias, numa entrevista ao Jornal de Negócios, aborda a queda da família Espirito Santo como uma queda de imagem, de poder, como um partir do espelho, como uma ferida narcísica que não tem betadine prometeico que lhe valha.

A teologia moral moderna geralmente resolve estas questões dando a alguns pecados/vícios uma espécie de poder aglutinador que acaba por dispensar discursos ( e razões) mais longos. Abençoadas, assim, a ganância e a inveja que resultam óptimas para podermos passar à frente.

O chamado cidadão interessado e atento – aquilo, no fundo, que quase todos gostamos de ser reconhecidos como (apesar de Pires de Lima preferir o ‘cidadão que faz’) - tem então para escolher, a via psicanalítica ou a via moral, ou, os mais piquinhas, ficar ali a meio caminho, entre os sonhos de Sigmund e as Parábolas do Filho de Deus (o nosso utópico "werde was du bist" )

C.A.Dias (que aprecio e que, de longe, é o único pensador português que consegue competir com Lobo Antunes no campeonato das entrevistas – pena Amaral Dias ser demasiado inteligente senão era ele que ganhava o Nobel) avisa-nos que se não fosse a Branca de Neve ainda hoje a Rainha se sentiria a mais bonita do Reino. Ou seja, acaba por haver sempre um mito invisível que vem por cobro à indecência e levantar o véu da ganância, partindo os espelhos e deixando o phallus murcho.

«O poder cura no imaginário» diz CAD depois de ter deixado a entrevistadora (AMR) alarmada com o seu anterior «Não há nada que mais cure as pessoas do que o poder». Só que basicamente o poder é uma merda, mas aí já a psicanálise não se pode aventurar, pois procurando «banir as sombras arcaicas do irracionalismo e da fé no sobrenatural» (como escreveu G. Steiner na ‘Nostalgia do Absoluto) tem de fazer stop onde os irracionais e moralistas crentes entram, de Biblia em riste a cantar: «quando o fizestes a um dos meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes»


A educação cristã do olhar faz-nos focar antes a vida dos pequeninos. Infelizmente não conseguimos e estamos sempre a controlar o buraco da agulha para ver qual foi o último rico camelo que passou por lá - e como terá feito ele.

Parvosterona


Sabe-se da literatura, da televisão, da história, e dos jornais, que o poder corrompe, sabe-se também que o poder afasta da realidade (esta vai-se tornando cada vez mais difícil de suportar), sabe-se igualmente que isola, etc, etc, bla-bla. Aparentemente todos esses desligamentos (versão mais fina das alienações) podem ser condimentados – somos periodicamente relembrados disso – de alguma actividade glandular que torna os detentores do (algum) poder, por assim dizer, excêntricos (a versão fina de parvos). O que torna o capricho em personalidade, e a incompetência em distração, também pode, com a ajuda do fantástico mundo da metonímia, fazer com que a parvoíce se transforme em génio.

Ciclovia


Estando impedidos de criar – com cê grande – resta-nos definir ciclos, algo em que, diga-se, temos (nós, a humanidade pensante) mostrado uma competência bastante decente.

Claro que o rolo da história trata de os ir amalgamando com o decorrer do tempo; por exemplo, se hoje, e só depois do 25 de Abril, podemos encontrar o (i) ciclo pós revolucionário, (ii) o ciclo cavaco, (iii) o ciclo guterres, (iv) o ciclo sócrates e (v) o ciclo passos- troika (coitado, será que nem sequer vai ficar com um ciclo só dele?) daqui a uns anitos tudo isto não será mais do que um ciclo maiorzito (ao qual ainda se juntarão o (vi) período salazar e (vii) a primeira república – dos detrás – e mais uns quantos que ainda virão no futuros) que, se calhar, os nossos trinetos chamarão de grande ciclo bosta ou então ciclo maravilha, consoante a parte do copo para que estejam a olhar. Certo é que daqui a uns anos Salazar e Cunhal, Afonso Costa e o Cardeal Cerejeira, Gungunhana e Vasco Santana farão parte do mesmo descritivo da história, eventualmente até vizinhos no mesmo – e único - parágrafo.

Ora feito o devido e prévio desconto, vários condimentos da actualidade recente permitem-nos estabelecer que um ciclo(zinho) iniciado em 200? estará para terminar. Temos exemplos tipo geop’lítica: Obama a dar de frosques, os russos a fazerem cruzeiros na Natolândia, um terrorismo islâmico com pretensões de Estado; e temos exemplos tipo realit’show: o Gespatifado, os carapaus de corrida da PT a passarem a PTinga, metade do país rendido aos encanto$ dos herdeiros de agostinho neto e outra metade rendida aos encanto$ dos herdeiros de deng xiao ping; enfim, melhor melhor, só despachar o Estádio da Luz embrulhado por Christo (com Jesus lá dentro, obviamente) já que não conseguimos enfiar o Braz & Braz na Alibaba.

Há no entanto coisas que nunca mudam – e assim nos asseguram estarmos ainda no mesmo programa de computador : o Lobo Antunes continua a dar entrevistas (a pretexto de livros especializados e destinados a decorar estantes), e os cabeleireiros continuam a ser paneleiros. É o chamado denominador comum da História.

Então e qual é a melhor maneira de nos prepararmos para um novo ciclo? Sabermos que em princípio iremos cometer os mesmos (alegados) erros, só que desta vez serão chamados ‘medidas’. Saber que o preto voltará a ser branco, mas ‘branco sujo’. Saber que tudo será (felizmente) igual, mas desta feita (felizmente) ‘diferente’. Saber que de tudo sabemos sem nada saber; melhor é impossível.

On a billboard


Pela recente biografia de Philip Roth (de Claudia Pierpont) soube-se que ele flirtou ao de leve («briefly dated», é a expressão usada) Jackie Kennedy em 1964. Alegadamente terá sido convidado a subir depois de um jantar num restaurante e «when he finally kissed her, it was like kissing the face on a billboard» (pág. 45). Apesar de tal se ter passado entre duas pessoas famosas, e que não apresentarão deficit de variedade de beijos na vida, tenho para anunciar que todos e quaisquer beijos a uma mulher são, para um homem, beijos em ‘quadros de avisos’. Nenhuma mulher beija sem a intenção - mais ou menos declarada - de mostrar ao homem qual é o lugar dele, seja ele qual for. Felizes os que percebem os avisos - a tempo.

O Conde Corado


No reino tinha estalado o escândalo. O Conde deixara a noiva à beira do altar e fugira com uma amante estrangeira de seu nome Eurora. Várias razões, todas moralmente inválidas, saliente-se, eram invocadas nos mais diversos foros de coscuvilhice do reino, desde os oficiais (o parlamento do reino) até aqueles mais informais (o barbeiro de sua majestade, ou a dildograria das princesas solteiras) passando pelos clandestinos (o bordel da tia Conspurcácia, onde o Rei se abastecia regularmente de pecados, nos intervalos da virtude).

A escandaleira passou as etapas definidas pela praxe estabelecida no Grande Protocolo da Hipocrisia e, passado algum tempo, o Conde já dava entrevistas, de mão dada com Eurora, dissertando sobre o futuro do Reino e o seu enquadramento nas mais diversas galáxias, ao ritmo de suaves acenos de queixo providenciado por uma corte de fiéis semi-defuntos que aumentava de dia para dia, alimentada de subsídios e indulgências várias.

Mas Eurora era uma mulher ambiciosa e dada a excitações de vária índole. Cobiçada por muitos, temida por outros tantos, fazia razias de deboche por entre os mais diversos sultanatos, deixando por geografias várias um rasto de destruição na reputação no Conde. Este, ocupado com as suas propriedades e com o destino histórico do Reino, limitava-se a encolher os ombros, a alargar as costas e a exercitar de quando em vez os quadris sempre que a mulher o levava a despacho.

Entredentes corriam certezas sobre a sua impotência e incertezas sobre a sua úlcera. Aparentemente o duodeno não estava a acompanhar as exigências de um estadista em fase de corno. Ora Eurora também não lhe queira mal e quando o deixasse haveria de fazê-lo em beleza, dando-lhe a chance de mostrar a si mesmo o garanhão que galopava nas suas entranhas. Humilhante na traição mas magnânima no abandono.

Pegou mão das suas melhores lingeris, adornou-se com as suas melhores hormonas, colocou um avatar de Afrodite em cada curva do seu corpo e atraiu-o para a grande armadilha do prazer. O conde nem queria acreditar em tamanha revolução. Afinal tudo não passavam de mal entendidos e mexericos corroídos pela inveja. Ali estava ela estendida, como uma Mata-Hari de Calcutá, num altar de luxúria e reconciliação.

Mas eis que o mais temível movimento intravenoso aconteceu: quando ela se apresentou louca e disponível, frágil e devoradora, o sangue do Conde baralhou-se no tráfego e, em vez de se apresentar de rompante nos locais mais desejados pelo desejo, não, espalhou-se, qual delta de Nilo à beira de Mare Nostrum, pelas generosas bochechas do Conde, que terminaram a noite num hino ao mais belo entrecôte.

Quando o Rei o viu largou todos os seus afazeres, refazeres e desfazeres, e deu-lhe a medalha do Rosto Ejaculado do Reino.

[5] Deuteronómio


Haverá algo intermédio entre a bênção e a maldição? Este é o primeiro dilema do homem depois de ter a suspeita de que existe um Deus que possui algo que aproximamos a sentimentos, valores e justiça.

O homem foi-se construindo como um mamífero de compromissos. Desde que descobriu que o mal absoluto é algo que não está ao seu alcance tenta gerir a existência como um bem menor - andando de coligação em coligação.

Deverá Deus fazer um pacto com os Homens – era a questão que estava na ordem do dia. Não bastava a Natureza e seria preciso a Lei? No Céu desconhecia-se o significado da Lei até o homem ter andado de êxodo em êxodo, de exilio em exilio, de escravidão em escravidão, de rebelião em rebelião. Ou seja, o homem, antes que Deus pestanejasse, já O tinha tentado esquecer.

Haverá então algo intermédio entre a bênção e a maldição? Assim algo como ser viúvo sem nunca ter casado, ser órfão sem nunca ter sido filho? Ser ladrão sem nunca ter roubado? Ser perdoado sem nunca ter ofendido.

Quando Deus se coligou com o homem terá equacionado coligar-se antes com outro animal ou nós fomos a 1ª escolha? Felizmente Moisés não tinha dúvidas quando atravessou o Mar Vermelho, seguiu instruções do seu parceiro de coligação.

O homem, na sua evolução acompanhada (ou tutelada) descobriu que não conseguia viver isolado. Tinha (teve, tem, terá) várias companhias à sua disposição, foi-se organizando como pode, desde a Anarquia ao Estado absoluto, desde o oportunismo à utopia.

Quando Deus equacionou fazer uma aliança entre Ele e o povo que andava atrelado ao Moisés, estaria com receio que se perdesse o que já fora alcançado até à altura? Será que os homens têm mesmo – mesmo - consciência do que já alcançaram?

Tanta canseira para descobrir sempre que Deus é o nosso único Aliado. E na religião dos compromissos não há intermédios.