A minha falsificação mais arrojada foi mesmo quando produzi uma ‘suposta’ sequela do ‘Pickpocket’ de Bresson. Seria, no fundo foi, um ‘Pickpocket II - la rédemption’, filmado no metro de Paris, num formato próximo do documentário e, por isso mesmo, com uma plausibilidade bressoniana mais controversa, ou seja, o enredo era comandado pela vertigem da circunstância e não por uma subliminar predestinação. No entanto, o encaixe financeiro que se me afigurava possível motivou-me de forma irreversível: soubera que um coleccionador belga de filmes raros e minimalistas pretendia criar uma espécie de museu da cera do cinema e, constou-me, precisava duma relíquia mediática. Eu sentia-me a pessoa certa, aparecendo-lhe com um Bresson em registo quase de hidden camera. Bresson, iria eu revelar em primeira mão, teria realizado esse filme sem ninguém saber, apenas ele com a sua câmara, - quase como num confessionário – e pensava ter destruído a fita quando, no auge de uma dor de dentes, a enterrou atrás duma sebe no bosque de Bolonha. O meu tio-avô tinha então descoberto tal preciosidade quando num fim de tarde aí se passeava a, claro, andar de bicicleta, lubrificando as artroses. O filme apresentava, pelo menos, duas sequências que poderiam perfeitamente ter-se tornado clássicas, não fora o inesperado pudor bressoniano: uma, com a duração de 12 minutos, em que uma moça come um pacote de batata frita apenas com uma mão, entre a estação de Montparnasse e a Gare du Nord, enquanto com a outra mão alivia a bolsa duma velhota em 20.000 francos, chegando inclusivamente a oferecer-lhe uma batata frita e até a largar uma genuína lágrima quando ela lhe mostrou a fotografia duma neta tuberculosa, e uma outra cena, absolutamente antológica, em que um carteirista, na estação de Invalides, rouba uma pasta a um funcionário dos correios, que, ao dar-se conta disso, rompe num riso convulsivo, quase patético. Bresson, desculpem, eu, vou atrás do carteirista sem ele se dar conta disso, e filmo-o durante 12 minutos (Bresson andaria fixado em planos de 12 minutos) a revolver o conteúdo da pasta e a descobrir que apenas continha frascos de mijo para as análises da próstata. O carteirista frustrado, na cena seguinte, visita a avó num lar de idosos para os lados da gare de Lyon, e chora convulsivamente arrependido (12 min) ao seu lado, sussurrando repetidamente: «le pissat m’a remi», enquanto a velhota crochetava umas bases para copos. Enfim, convenhamos que era impossível resistir a um obra desta, e ainda para mais envelhecida, que nem carvalho de pipa, nas entranhas da terra benzida da cidade luz. O belga, de seu nome Julien Flamini, já falecido de coronária entupida, nem queria acreditar no que eu lhe apresentava: um tesouro bressoniano de 48 minutos, revelando em directo as catacumbas do pecado e da redenção por entre os carris da linha férrea. Foi das falsificações que inesperadamente mais me rendeu, mas, como ainda vivia uma fase de libertinagem e outras luxúrias avulsas, tudo se derreteu numa voragem de secreções. Um falsificador que queira uma carreira longa deve ter um sistema glandular preguiçoso ou, pelo menos, conservador.
ehehe
ResponderEliminarOlha quem se dignou passar por aqui:
ResponderEliminarA sra D. Zazie! :)